Romance VIII
Eu preciso de uma pá e de um terreno ermo; não tenho dinheiro: mesmo a mais simples coisa — Deus, uma pá — escapa das minhas possibilidades financeiras: é a vida típica do escritor brasileiro, não tem dinheiro pra enterrar nem a si nem aos próprios sonhos.
Romance VII
E por que não o desejo também, da morte, da loucura, da solidão? Quem foi que disse que o desejo e o medo se anulam? Esse não seria um dos nomes proibidos do amor?Como se existissem nomes proibidos. Tudo cabe num espírito que tudo afirma e aguarda a própria explosão. Mas a vida só é […]
Romance VI
Ser escritor é apenas ser como todo mundo e temer a morte, a loucura, a solidão, ter essa vontade de voltar para uma casa que não é nossa, que não sabemos onde é, que não existe. A diferença é que falamos sobre isso demoradamente e gravar esse discurso numa água de papel que tem a […]
Romance V
Quando eu fazia coisas que não devia minha mãe perguntava, com raiva: quem mandou? Eu era criança, naturalmente, não discutia a filosofia alemã e o romance russo, que eu desconhecia. Hoje quero uma sentença exata que evoque mortos inventados e verdades passadas. Nada me obriga; mas, se não consigo, me angustia. Deus. Diante de uma […]
Romance IV
Seria mais fácil se fosse a primeira vez. Mas quando foi a primeira vez? Antes do primeiro livro derrubei toda uma floresta de palavras inúteis, muitas delas arrogantes ao meu gosto. Hoje as palavras me parecem quase humildes e burocráticas, muito bem organizadas em artigos de lei. Deus não fala aqui, nada começa, os leões, […]
Romance III
A mim me angustia que cada livro seja o último, que cada capítulo seja o último, que cada página seja a última, que cada parágrafo seja o último, que cada frase e cada palavra e cada letra possa ser a última. E que depois eu sobreviva mudo. Por isso comparo tantas coisas com tantas coisas: […]
Romance II
Vou anunciar o apocalipse amorosamente? Não: não o apocalipse: aquela festa do fim do mundo, que eu tinha esquecido. A maior festa já vista, em que poucos serão chamados e todos, escolhidos. Uma casa de formigas vista de cima: a câmera se aproxima: são pessoas. Estão cozinhando a fogo brando e chamam isso de vida. […]
Romance I
Comecei a escrever uma prosa extensa. Chamam isso, no ocidente contemporâneo, de romance. Escrevo. Feito qualquer outro trabalhador é provável que eu preferisse fazer nada. A rede é minha própria aranha amorosa: quero comer teu corpo cozido no teu leite, ela me diz. E penso no meu leite de palavras, cada vez mais ralo. Tudo […]
Ensaio para um possível romance
Concebi o personagem numa situação de total impotência e imobilidade. Não costumo me importar com o interesse que as palavras que escrevo em sequência possam despertar no meu potencial leitor; o que me preocupa, neurótico, é como os poucos que talvez eu ainda tenha vão interpretar o que vai escrito, o que pode ser que […]
UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD III

Eu sei que a declaração de amor, o verbo, sua alma, vai ficar só na garganta. O senso realista pede apenas a possibilidade de pedir perdão e a esperança cristã de um beijo casto, a despeito das vontades tão vulcânicas da carne, do sangue, da origem mais ancestral. A praia ainda não está presente, ainda […]
UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD II

Areia? Areias, era mais adequado no plural, por causa de um eco literário, passado distante, e por causa também do eco das próprias areias, sua migração, o vento. A palavra poderia ser estilisticamente corrigida, posta no plural mais significativo: os ressentimentos da poesia podem ser ocultados assim, através da rescrita de cada palavra. É a […]