Sobre Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

Romance V

Quando eu fazia coisas que não devia minha mãe perguntava, com raiva: quem mandou? Eu era criança, naturalmente, não discutia a filosofia alemã e o romance russo, que eu desconhecia. Hoje quero uma sentença exata que evoque mortos inventados e

Romance IV

Seria mais fácil se fosse a primeira vez. Mas quando foi a primeira vez? Antes do primeiro livro derrubei toda uma floresta de palavras inúteis, muitas delas arrogantes ao meu gosto. Hoje as palavras me parecem quase humildes e burocráticas,

Romance III

A mim me angustia que cada livro seja o último, que cada capítulo seja o último, que cada página seja a última, que cada parágrafo seja o último, que cada frase e cada palavra e cada letra possa ser a

Romance II

Vou anunciar o apocalipse amorosamente? Não: não o apocalipse: aquela festa do fim do mundo, que eu tinha esquecido. A maior festa já vista, em que poucos serão chamados e todos, escolhidos. Uma casa de formigas vista de cima: a

Romance I

Comecei a escrever uma prosa extensa. Chamam isso, no ocidente contemporâneo, de romance. Escrevo. Feito qualquer outro trabalhador é provável que eu preferisse fazer nada. A rede é minha própria aranha amorosa: quero comer teu corpo cozido no teu leite,

Ensaio para um possível romance

Concebi o personagem numa situação de total impotência e imobilidade. Não costumo me importar com o interesse que as palavras que escrevo em sequência possam despertar no meu potencial leitor; o que me preocupa, neurótico, é como os poucos que

UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD III

Eu sei que a declaração de amor, o verbo, sua alma, vai ficar só na garganta. O senso realista pede apenas a possibilidade de pedir perdão e a esperança cristã de um beijo casto, a despeito das vontades tão vulcânicas

UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD II

Areia? Areias, era mais adequado no plural, por causa de um eco literário, passado distante, e por causa também do eco das próprias areias, sua migração, o vento. A palavra poderia ser estilisticamente corrigida, posta no plural mais significativo: os

UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD

Não falo alemão; é um dos meus inúmeros defeitos: também nessa língua preciso contar com o talento, o bom-senso e a sorte dos tradutores; assim como preciso me conformar e não pensar tanto em que jamais saberei com cem por

GSQ

Foi no meu peito que a Rainha morreu;
Isso faz tempo, o trono posto, disponível,
Herdeiro nenhum; nem os aventureiros
De costume e tradição, apareceram
Aos portões já abandonados e sem respeito.
Nem os abandonados da vida desejavam
O Palácio; nem os revolucionários lembravam
De pôr fogo

Férias escolares

Temos pouco tempo. Os prazos mais longos são uma prova disso das mais eloquentes. Haveria uma eloquência no tempo? O tempo em si, a passagem cronológica e absurda de cada fragmento mencionável e a sua contagem, regressiva ou não, em