UM LEITOR DE THOMAS BERNHARD III

Eu sei que a declaração de amor, o verbo, sua alma, vai ficar só na garganta. O senso realista pede apenas a possibilidade de pedir perdão e a esperança cristã de um beijo casto, a despeito das vontades tão vulcânicas da carne, do sangue, da origem mais ancestral. A praia ainda não está presente, ainda não é uma realidade, o mar pode ter sido asfaltado e não sei. Penso no verbo amar, que não lembro ter lido na obra de Thomas Bernhard conjugado em nenhuma pessoa, mas li apenas até agora dois livros e os olhos flutuam sobre a página com vários pesos, de acordo com a força gravitacional das palavras. Que no máximo formam uma canção que é apenas uma canção. Mas as mentiras de um livro também doem? As mentiras de um livro, de uma narrativa: tão leves. Pois o acordo tácito inicial era não haver nunca promessas sérias. Alguma promessa, aliás, é mesmo séria? Inda penso o verbo pesado na balança ela mesma sem peso e sem nome. Sonho. Nada cobra da mente e pouco cobra dos braços, o sonhar. Quero pensar que sonham sem interrupção as pessoas em coma e que sonham belamente as pessoas que foram dormir e jamais acordaram. Nem acordarão. Que o sonho, porém, permaneceu despercebido da morte. O meu sonho mesmo, a possibilidade de dar uma versão tacanha e infantil dos fatos, a possibilidade de ter diante do rosto os olhos tão redondos e pretos, o meu sonho mesmo, praieiro e solar, eu queria que fossem um dia eterno. Mas os livros de Thomas Bernhard, austríaco que detestava a Áustria, os livros que me coube possuir e que ainda nem li todos pesam sobre a mente como um aviso. De quê, exatamente? Que culpa os livros podem fazer pesar na consciência que não o não terem sido lidos ou o terem sido lidos com pressa e displicência? Os livros, objetos inertes, papel pintado com tinta, menos que um cachorro vivo. E ainda assim, sim, eu sofro, mas os livros mesmo são apenas um índice, um termômetro, no máximo uma balança. Os melhores livros avisam que os livros mentem. Uma lembrança de Thomas Bernhard. A praia ainda não está aqui.
Mas ainda existe a praia, o mar. A velhice eu me iludo que bate na porta, quando ela bate no peito. Os livros que comprei foram vendidos em segunda mão imagino que pelos herdeiros do leitor ou da leitora, porque não me ocorre que essa leitora ou leitor pode ter perdido tudo e só lhe restava vender os livros ou que tenha se cansado dos livros. Um livro, os leitores apaixonados e os escritores, que precisam vender o que escrevem, muita vez se recusam a aceitar essa sua dimensão física e material, é também uma mercadoria, das mais traiçoeiras, porque, o que é mesmo que se compra quando se compra um livro? É possível comprar mesmo o seu texto? É possível comprar a ordem das suas palavras? É possível comprar as próprias palavras? Ou quem fala? A experiência literária de James Joyce. Ou de Thomas Bernhard. Sob uma etiqueta com um preço. Que cai com o tempo. As folhas amareladas, eventualmente uma moda que passou. Qualquer um que escreva não deseja um pouco isso? Podemos querer ser esquecidos, permanecer invisíveis e ainda assim escrever, eventualmente queremos que nos leiam, ousadamente que entendam o que quisemos dizer. A quem Thomas Bernhard queria comunicar seu ódio e revolta? Falamos com quem queremos? A invisibilidade é dupla como um diálogo entre um deus e um devoto? Comparação tão estúpida que nem chega a ser arrogante, ou pateticamente arrogante. Lázaro, ressuscitado, assustado com a vida devolvida. Perguntado sobre o que viu pode ter dito que nada viu, que mortos os olhos não veem.
Thomas Bernhard está morto e não há de ressuscitar. Penso nos seus livros dispostos sobre a mesa numa barraca de praia e na paz que só poderia confessar a ouvidos que já não alcanço. A palavra que todos os homens conhecem nunca li nos seus escritos até agora, mas pode ser que eu ainda seja um leitor desatento como um adolescente empolgado.
Terei de recorrer a formas superficiais da paz, as palavras num livro. O livro cansado de um furioso homem de guerra. Pois.
Meia-noite. Não demora tanto que o sol de novo nasça. Como se rasgasse um pano e eu quase ouço o sol feito ouvisse uma coruja de fogo. A praia existe. O mar existe. Posso dizer que me esperam, mas o mais belo é que não esperam; estão abertos para quem vier e são indiferentes a quem vier e a quem não. Estarei sozinho com livros que pode ser que eu leia ou não. De alguma forma feliz ou gozando do meu modo dessa tristeza. E digo com serenidade competente, agora sim, no mais adequado dos números:
Areias.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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