Sobre Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

Romance IX

A corrosão inerente começa quando adiamos as coisas, quando começamos a negociar com o tempo de uma forma que o tempo não permite: o tempo feito o mar não tem cabelos, mas também, igual ao mar, não tem uma cara

Romance X

A literatura é o sorriso de uma sociedade — banguela: somos todos meio filhos do escorbuto (ai, a súbita vontade inexplicável de fazer essa declaração no mais dantesco toscano). Uma bela pobreza em preto e branco, sob uma crua luz

Romance IX

O EDITOR NO CASTELO
A heráldica da editora dizia: “As árvores se acabam”. Em certo momento, a placa com a frase anunciava a entrada de um prédio vazio: o editor, tirano, tinha se mudado e instalado sua editora numa caravela. Submetia

Romance VIII

Eu preciso de uma pá e de um terreno ermo; não tenho dinheiro: mesmo a mais simples coisa — Deus, uma pá — escapa das minhas possibilidades financeiras: é a vida típica do escritor brasileiro, não tem dinheiro pra enterrar

Romance VII

E por que não o desejo também, da morte, da loucura, da solidão? Quem foi que disse que o desejo e o medo se anulam? Esse não seria um dos nomes proibidos do amor?Como se existissem nomes proibidos. Tudo cabe

Romance VI

Ser escritor é apenas ser como todo mundo e temer a morte, a loucura, a solidão, ter essa vontade de voltar para uma casa que não é nossa, que não sabemos onde é, que não existe. A diferença é que

Romance V

Quando eu fazia coisas que não devia minha mãe perguntava, com raiva: quem mandou? Eu era criança, naturalmente, não discutia a filosofia alemã e o romance russo, que eu desconhecia. Hoje quero uma sentença exata que evoque mortos inventados e

Romance IV

Seria mais fácil se fosse a primeira vez. Mas quando foi a primeira vez? Antes do primeiro livro derrubei toda uma floresta de palavras inúteis, muitas delas arrogantes ao meu gosto. Hoje as palavras me parecem quase humildes e burocráticas,

Romance III

A mim me angustia que cada livro seja o último, que cada capítulo seja o último, que cada página seja a última, que cada parágrafo seja o último, que cada frase e cada palavra e cada letra possa ser a

Romance II

Vou anunciar o apocalipse amorosamente? Não: não o apocalipse: aquela festa do fim do mundo, que eu tinha esquecido. A maior festa já vista, em que poucos serão chamados e todos, escolhidos. Uma casa de formigas vista de cima: a

Romance I

Comecei a escrever uma prosa extensa. Chamam isso, no ocidente contemporâneo, de romance. Escrevo. Feito qualquer outro trabalhador é provável que eu preferisse fazer nada. A rede é minha própria aranha amorosa: quero comer teu corpo cozido no teu leite,