Um menino contradizente

“Este menino será motivo de queda e de elevação, será um sinal de contradição”. (Simeão)

 

Com o presente artigo concluímos a encadeação de quatro breves reflexões em torno do tempo pascal cristão: “De dentro de nossos por quês”, “Quem devora quem?”, “Deus se fez terra e tempo”, “Um menino contradizente”. Nosso sentido é antes de tudo de aprender, de manter-nos aprendendo, neste exercício contínuo de dar e receber, ao apresentar nossa pequena parcela de colaboração com reflexões que visem à conquista de unidade dinâmica, criativa e comprometida, entre aquilo que dizemos e o que fazemos em nosso agir humano, pessoal e coletivo, buscando o bem comum.

Neste tempo pascal cristão, recordamos que logo no início do pontificado de Francisco, o Papa que veio da América do Sul, periferia do sistema político-econômico, diversos setores da Igreja Católica, condicionados pelo “habitus” fundado numa lógica milenar conservadora hierárquica de exercício do poder pontifício romano, foram surpreendidos na Semana Santa do ano 2013 pela celebração da missa do lava-pés fora dos muros do Vaticano, numa penitenciária de adolescentes, com o Pontífice lavando os pés de sujeitos não-católicos, especialmente de mulheres. Uma enxurrada de ataques foi torpedeada por esses setores, acusando o Papa Francisco de haver traído a Tradição da qual deveria ser a principal garantia.

Mas a contradição apresentada por Francisco parece ser a mesma desenvolvida por Jesus. Ele não apareceu à existência para ser servido, mas para servir (Mt 20, 28) àquelas pessoas mais vulneráveis, violentadas pela lógica do sistema dos poderes romano e religioso de então. Um “Rei” que nasceu pobre, numa estrebaria, filho de um carpinteiro, manteve-se em sua existência pobre com os pobres, para apontar-lhes uma lógica de dignidade universal a partir de relações vivas e reais de fraternidade e de justiça distributiva. Para Jesus, os empobrecidos podem ser construtores de uma nova sociedade, como também de outro modelo de comunidades eclesiais (igrejas). Antes de ser pobres concretos, eles são oprimidos pelo sistema político-econômico. Fiéis cristãos e as estruturas eclesiais deveriam envolver-se com o processo de libertação dos condenados da terra, afinal toda opressão clama por libertação, é o sentido central da Páscoa. A questão crucial e sempre aberta está em como anunciar e vivenciar Deus, que é Pai-Mãe de bondade de todos os humanos, no mundo repleto de opressões e oprimidos, de opulência de poucos e miséria de muitos? Que caminhos de mudança apontar e trilhar?

Duas imagens sobre a Páscoa, contidas nos textos bíblicos, apresentam-se com muita propriedade para o nosso tempo presente. A primeira encontra-se no evangelista Mateus (25, 34), para o qual Jesus ressuscitado convida a todos aqueles a gozarem da herança do seu reino. O critério de pertença ao reino estabelecido pelo evangelista é justamente o de haverem em sua existência terrena realizado a páscoa com os oprimidos: “tive fome e me destes de comer”, “tive sede, destes-me de beber”, “estava nu e me vestistes”, “doente e me visitastes”. Realizar com eles a passagem de uma vida de carências e humilhação, para uma vida de justiça e dignidade compartilhadas.

A segunda imagem vamos encontrar na Primeira Carta do Apóstolo João (1 Jo 4, 20): “Se alguém diz: eu amo a Deus, e odeia seu irmão, é um mentiroso. Pois quem não ama o seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?”. Portanto, se se quer estar em Deus, é condição determinante estar com os semelhantes concretos em relação de fraternidade concreta, nada de abstração espiritualizada ou desconexão com a existência terrena. Afinal, “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (reais e concretos)”. Deus é amor, quem ama os semelhantes está em Deus. Um projeto simples, mas exigente.

Concluímos com uma singela passagem de Klaus Hemmerle (1929-1994), teólogo e bispo católico alemão: “Eu gostaria que todos nós pudéssemos ter olhos de Páscoa. De olhar na morte e vermos a vida; dentro das feridas relacionais, vermos o perdão; nos momentos de separação, vermos a unidade; em cada pessoa humana vermos Deus; em Deus, vermos a pessoa humana; e em mim, eu ver você”.

Boa Páscoa!

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .