“Ele estava atolado na indolência, sem identidade. As cidades e florestas e os seres também não tinham identidade, eram sombras”. (Samuel Beckett)
“Sofrer sem sofrimento”. (Fernando Pessoa)
“No paraíso não havia tédio, pois o espaço era todo preenchido por Deus. Então por que Eva e Adão resolveram comer o fruto da árvore do conhecimento? Deus não lhes bastava?”. (Kierkegaard)
“Como podia Deus, em sua perfeição, ser alguma vez considerado entediante?”. (Heidegger)
O que pode ser mais existencialmente perturbador do que o tédio? Como ele surge, como ele se instala na existência humana, como se propaga? Seria o tédio moderno consequência imediata de uma cultura que impõe aos indivíduos manterem-se num regime de alta velocidade existencial, de agitação permanentemente superficial, ameaçados pelo descarte social todas as vezes que expressam um formato não congruente com o modelo cultural frenético-hedonista contemporâneo? Em que medida poderia o tédio vir a nos ajudar a encontrar clareza sobre as escuridões do tempo presente?
No “Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa escreveu: “Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam sentir, que não deixam claramente ser. É uma bebedeira de não ser nada”.
Uma névoa que nos impede de sentir a luz e a sombra na paisagem, de escutar o dito e o não-dito. Uma poeira com a qual nos acostumamos na caminhada, aspirando-a, comendo-a, tão fina e sutil que nem sequer cria qualquer reação alérgica em nosso organismo, para expulsá-la de nós. Se não nos frearmos em nossa agitação para sacudi-la constantemente, essa chuva de pó nos domina. O perigo do tédio reside justamente no fato de não se saber o seu nome nem sua origem.
Teresa de Calcutá, uma pessoa comum, com os pés no chão e no tempo, muito observadora da paisagem, muito concreta, sempre atenta às necessidades de suas companheiras e companheiros de estrada, afirmava o seguinte: “Se for santa, serei uma santa da escuridão, e deixarei os céus para estar na terra ao lado daqueles que estão nas trevas, para ajudá-los a encontrar luz”. Teresa, com sua vida voltada não para si, mas para fazer o bem aos outros, principalmente para aqueles expropriados das condições de vida material e espiritual, gerou em muitos corações e mentes o sentido da generosidade e gratuidade entre humanos, possibilitando-lhes retirar-se do tédio em que se encontravam.
O tédio surge justamente quando somos obrigados a fazer o que não queremos, ou quando não temos ideia alguma do que fazer por não conseguirmos nos agarrar a algo que nos dê sentido profundo: ficamos envolvidos completamente mimetizando celebridades, porque a nossa vida própria carece de significado. As redes sociais oferecem um terreno ideal para o estabelecimento destes comportamentos.
Kierkegaard chamou atenção para o vazio existencial provocado pelo tédio, o qual contribui em sua raiz para o florescimento de muitos males. A prática de queimar feiticeiras e bruxas fazia parte do cardápio das pessoas para saírem do seu tédio medieval. Guerras foram festejadas por multidões nazistas, delirantes e eufóricas, enchendo as ruas (como tão bem ocorreu com MBL, Vem pra Rua etc.), celebrando o fato de alguma coisa finalmente haver quebrado a monotonia da vida, tornando-as presas fáceis de regimes totalitários, como ocorre atualmente no Brasil neofascista em marcha pelas mãos do bolsonarismo.
Portanto, a existência do tédio pode significar uma falha grave na sociedade ou na cultura enquanto transmissores de significados: em que medida as coisas ainda são portadoras de cultura? Uma vez que o homem moderno começou a se ver como um ser individual voltado para si, devendo como imperativo existencial realizar-se a si mesmo, a vida cotidiana começou a transformar-se numa prisão. O tédio não está associado às necessidades reais, mas aos desejos. Hoje parece ser mais relevante algo ser “interessante” do que ter “valor”. O olhar estético do tempo presente julga só a superfície, o conteúdo tem de ser evitado a qualquer preço.
No contexto da emergência populista de direita, onde a mobilização das massas depende em grande medida da construção de um senso de identificação sentimental com o líder, o bolsonarismo desenvolve seu projeto estético selecionando e exaltando valores comuns, como pátria, família, tradição, religião, propagandeando a promessa de um país melhor, mitificando o imaginário nostálgico de um Brasil heroico quando os inimigos da pátria não tinham maculado a cultura conservadora. Desse modo, a pátria a ser resgata pelo líder é aquela sem lastro necessário de materialidade histórica. E, ao mesmo tempo, estimula e explora intensamente, pela a excitação em seus discípulos, a polarização de sua população. (SCHWARCZ, Lila. Bolsonaro e seu reino. Rev. Zum. Rio de Janeiro, Julho de 2020).
A estética bolsonarista apresenta-se como uma “sombra da democracia”, desqualificando as instituições democráticas – Judiciário, Parlamento, Imprensa, Partidos Políticos, Universidade, Patrimônio Cultural – criando imagens, linguagens e instrumentos de comunicação “direta” (redes sociais) entre o líder e sua base de seguidores. As redes sociais de comunicação bolsonaristas ocultam sua função mediadora para criar a ilusão de uma “ausência de mediação” estimulando uma espécie de “delírio” na massa consumidora das mensagens bolsonaristas pela falsa realidade de se perceberem com uma importância inédita, devido à ilusão da comunicação direta, sentindo-se líderes com o Líder Supremo (como ele se auto intitula “Chefe Supremo”, 22/04/2020). Em decorrência da sensação ilusória, os seguidores são conduzidos a elevar ao posto de “inimigos” os canais tradicionais midiáticos de comunicação impressa e televisiva juntamente com seus operadores.
O neofascismo bolsonarista, por meio de sua rede digital de comunicação, apoia-se em recursos comunicacionais e estéticos para nutrir constantemente em seu rebanho seguidor a elevação do seu líder à figura messiânica (Mito, Ungido, Escolhido, Ressuscitado por Deus no episódio nebuloso da facada); difundir a concepção, por meio de emprego de “significantes vazios”, da figura do inimigo do Estado (notadamente todos os que lhe façam oposição, mais especificamente aqueles militantes do campo da esquerda política brasileira); homogeneizar o povo, aglutinando identidades diversas num só caráter identitário patriótico, soldados prontos a dar a vida pela liberdade da Pátria ameaçada, alimentando em seus espíritos o gosto pelo ódio ao inimigo, viralizando o seu projeto neofascista de “nação”. (MELLO, Ana et alii. Estética Bolsonarista nas redes e populismo digital. Congresso Internacional Comunicação, Consumo e Novos Fluxos Políticos. ESPM, 2021).
Talvez, pelo fato de o tempo estar a passar tão rapidamente, o conteúdo da realidade torna-se imperceptível ou desnecessário a muitas pessoas. Permanecer na velocidade torna-se uma forma de êxtase (viver fora de si), como assinala Milan Kundera: “O grau de lentidão é diretamente proporcional à memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. Nessa velocidade frenética e delirante, podemos nos esquecer de nós mesmos e talvez nos esquecer por completo do que vivemos” (Lentidão, Lisboa/Porto: Asa, 1995). E como lembra Wittgenstein, “na corrida da filosofia, da reflexão qualificada sobre a vida e os viventes, vence quem consegue correr mais devagar; quem cruza por último a linha de chegada”. Para vencer o tédio e o neofascismo há que pensar bem, sentir bem, agir bem, sem o frenesi da velocidade esvaziada e esvaziante do tempo presente.
Valdenir de Oliveira viana
Na minha visão. pra afastar o tédio nada melhor que o serviço social ajuda o próximo acolher o necessidade de quem precisa ser util na vida de alguém vale apena acreditar gente