Pensamentos expostos

No último artigo aqui publicado (https://segundaopiniao.jor.br/dialogar-na-planicie-para-discernir-melhor/), procurei seguir, como meta-discurso, o fio condutor das duas categorias basilares da democracia moderna, as quais sugeriram o título para a minha exposição tratada: a igualdade = dialogar na planície, e a liberdade = para discernir melhor. Esclarecendo que discernimento é compreendido como o exercício de entendimento da realidade fundado na liberdade de sentir, pensar, expressar e agir. Algo que num sistema tradicionalista e anti-igualitário era privilégio apenas de alguns eleitos pelo Alto. Por muito tempo, aos não-eleitos pelo Alto cabia apenas a opção da escuta e da obediência, caso contrário eram submetidos à excomunhão, à guilhotina, à forca ou à fogueira.

A democracia moderna veio romper com esse privilégio ao criar uma sequência de direitos humanos positivos: políticos, civis, sociais, econômicos e culturais. A revolução  copernicana produzida pelo acontecimento político que instituiu a democracia moderna, ao inverter o centro da soberania, retirando-a do alto e colocando-a no chão (aproveitando a sábia expressão de Pedro Casaldáliga quando se reporta à Teologia da Libertação como aquela que é elaborada a partir do chão), atingiu o Poder de forma crucial – tanto o poder temporal como o poder espiritual – ao colocar no mesmo patamar de dignidade e direitos, ou seja, de voz e de ação, todos os cidadãos e cidadãs. Logicamente, uma revolução desta envergadura incomoda interesses e prerrogativas historicamente acumuladas ao longo dos séculos. Cria reacionarismos por parte dos detentores do antigo regime contrários ao amadurecimento e à emancipação humana.

Portanto, como anota Alain Touraine (in O que é democracia, Martins Editora), a democracia é o reconhecimento que a humanidade faz de si mesma, percebendo que pessoas e comunidades são capazes de ser agentes de sua história, como sujeitos livres e iguais, tendo o direito de agir na qualidade de criadores de suas vidas individual e coletiva, exercendo a sua liberdade positiva (criadora), e não somente a liberdade negativa, isto é, aquela que nos move para libertar-nos dos grilhões do Poder. O eixo central da democracia é a soberania popular.

Por isso pensar livremente incomoda, porque com o pensamento tocamos o Intocável. E o Intocável é, definido pelo Poder, o que não pode ser tocado. Porque ao tocá-lo são expostas fragilidades, dúvidas, incongruências, manipulações, interesses, mitos que precisam ser guardados em mistério. Contudo, a história não é um dado que cai do céu, ela é resultado de ações de mulheres e homens, todos literalmente falíveis, imersos no tempo e com o tempo, no espaço e com o espaço. Portanto, como acentua o historiador Adam Schaff, em seu livro História e Verdade (Ed. Martins Fontes), a história precisa não somente ser revisitada, como reescrita a partir das descobertas e perspectivas possibilitadas pelos desvendamentos dos mistérios ocultados, ou não visualizados, para criarmos as condições de romper no presente com abusos e absurdos praticados no passadotendo em vista almejarmos atingir um patamar civilizacional mais generoso e menos condenatório, para todos.

Entre os absurdos recentes está o CRIME HEDIONDO praticado contra a Menina Capixaba, de 10 anos de idade, abusada sexualmente desde os seis anos. Reza o Artigo 217-A, da Lei 12.015/2009, que é crime hediondo o ESTUPRO DE VULNERÁVEL de pessoas menores de 14 anos de idade. Pena de reclusão: de 08 (oito) a 15 (quinze) anos. Se a conduta resulta em lesão corporal de natureza grave ou risco de vida, a pena de reclusão é de 10 a 20 anos. Por outro lado, o artigo 128, do Decreto-lei2.848, do ano de 1940, reza que NÃO SE PUNE O ABORTO PRATICADO POR MÉDICO SE A GRAVIDEZ RESULTA DE ESTUPRO E O ABORTO É PRECEDIDO DE CONSENTIMENTO DA GESTANTE OU, QUANDO INCAPAZ, DO SEU REPRESENTANTE LEGAL. Além disso, a Lei 12.845/2013 determina o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, cabendo aos hospitais oferecer às vítimas de violência sexual pleno atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, considerando-se VIOLÊNCIA SEXUAL qualquer forma de atividade sexual não consentida.

Exposto isso acima, pergunta-se: onde está tipificado na Lei o crime hediondo propagado reiteradamente por algumas autoridades eclesiásticas e governamentais em relação à interrupção da gravidez da Menina Capixaba de 10 anos de idade, vítima de estupro? É fundamental que elas apontem. A sociedade respeitosamente continua aguardando.

Coincidência ou não, hoje, em minha meditação matinal, refleti sobre uma passagem do evangelho de Lucas 2, 34-35 que trata profeticamente de um Menino que, pela sua presença, fará com que “o pensamento de muitos corações seja revelado”. No caso brasileiro atual é uma Menina. Em seu sofrimento de criança, está permitindo que muitos pensamentos, antes ocultos e misteriosos, agora estejam expostos. E assim vamos construindo a História Humana, tocando hoje um pouco do outrora Intocável.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

1 comentário

  1. Maria Lianeide Souto Araújo

    Concordo com você Alexandre Aragão. Precisamos di-a-logar na planície.

    Faço parte deste grupo de cidadãos que aguarda respostas para sua indagação.