Dialogar na planície, para discernir melhor

Aqui no site Segunda Opinião publiquei o miniconto “Maneiras de amar e desamar” (https://segundaopiniao.jor.br/maneiras-de-amar/) que contém uma breve passagem retirada de O Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski, com o qual busco dialogar para enriquecer o argumento por mim problematizado no referido conto sobre a condenação taxativa proferida pelo personagem dom Coimbra, bispo católico, em relação à orientação homossexual de indivíduos humanos, onde faço uma referência metafórica sobre  a histórica pretensão católica de ser a consciência dogmática hegemônica do mundo, como ocorreu, por exemplo, no fundamentalismo da Inquisição espanhola,  na qual milhares de pessoas foram condenadas à morte na fogueira por não seguirem os preceitos estabelecidos pela Autoridade eclesiástica de então.

Também no último artigo, publicado na seção Cultura deste mesmo site, “Sobre a gratuidade” (https://segundaopiniao.jor.br/sobre-a-gratuidade/)dialogo com o Papa Francisco em sua homilia do dia 15 de maio de 2020, no que tange a inclinações “judaizantes” em alguns líderes, no nascedouro das primeiras comunidades cristãs, terminologia que expressa a ação de reducionismo da novidade cristã a dogmas e preceitos, por meio de prescrições moralistas rígidas a serem seguidas por seus fiéis, onde evidencio, alicerçado no pensamento do Papa atual, que o espírito vertical de rigidez leva sempre à perturbação e, como decorrência, ao escrúpulo que infunde terror e insegurança, possibilitando manipulações que atentem contra a liberdade humana.

Ontem, em outros diálogos, agora com amigos e amigas pelas redes sociais, o tema em pauta continuou a ser o abominoso crime perpetrado contra a Menina de dez anos de idade, não somente pelo estuprador, mas também por todas e todos aqueles que a chamaram aprioristicamente de assassina, quando na verdade ela é uma vítima desolada, desde os seis anos de sua vida sendo violentada em sua dignidade humana, tratada como coisa, como objeto na mão dos adultos. Teve de submeter-se a sair de sua cidade, que se recusou a atendê-la em seu direito de vítima, viajar até a capital pernambucana, Recife, para lá ser realizado o seu direito soberano, como tão bem sentenciou o juiz da Vara da Infância.

Em um momento desses diálogos, alguém recordou um episódio ocorrido na segunda metade do século XX que vem somar como mais um dado histórico importante a compor a cadeia dinâmica de reflexão pela busca de discernimento sobre a complexidade política, religiosa, ética, simbólica que envolve o drama da Menina. Uma amiga lembrou que em 1968, três anos após a conclusão do Concílio Vaticano II, época de lutas por liberdade, como nas manifestações estudantis em Paris, na luta do povo checoslovaco contra o regime soviético e na luta do povo brasileiro contra o recrudescimento da ditadura militar com o AI-5, o Papa Paulo VI, no dia 25 de julho, invocando a infalibilidade do ministério papal, atingiu o mundo ocidental católico com preceitos externos, disciplinadores da liberdade da vida íntima dos casais católicos, por meio da encíclica “Humanae Vitae”, ao estabelecer como pecados graves o uso de pílulas anticoncepcionais, de todos os meios mecânicos de contracepção (camisinha e outros), como também o método da relação sexual interrompida para evitar a gravidez.

Um jugo deveras pesado sobre aqueles casais fiéis à doutrina católica, num momento em que parecia que a Igreja Católica havia aberto suas janelas e portas para buscar dialogar com os sinais dos tempos e com as pessoas de boa vontade. Principalmente porque com a rigidez de se fixar uma lei condenatóriageral e absoluta proíbe-se de considerar a autonomia, as particularidades, a criatividade e os imprevistos da dinâmica da relaçãoamorosa a dois. É um olhar de fora, não de dentro da travessia e da labuta matrimonial. Um olhar do alto da montanha, não da planície. O resultado foi uma espécie de “esquizofrenia moral” em que a prática dos fiéis distanciou-se muito da normativa papal. Imaginem se ainda houvesse fogueiras!

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .