DOMINGO DE RAMOS EM TEMPO DE BOLSONARISMO

Para o teólogo brasileiro João Batista Libânio (“A religião no início do milênio”. Loyola, 2002), a análise do fenômeno religioso é um elemento imprescindível para a compreensão adequada das sociedades modernas tardias. Além disso, com a globalização, a dimensão religiosa humana é de agora em diante um componente essencial na cena política mundial. O complexo midiático com as redes sociais assumem funções de igrejas, no campo cultural, ao produzirem símbolos, ritos, sentidos, crenças, explicações sobre o real e figuras para imitação e fidelidade, mesmo imitação de pessoas. Por exemplo, quinta-feira, 25/03/2021, bolsonaristas da cidade de São Leopolodo – RS bateram continência em praça pública para uma caixa gigante de cloroquina ao som do hino nacional, contra o lockdown decretado pelo prefeito do município que é do Partido dos Trabalhadores (PT). Diante da radicalização estratégica da trollagem bolsonarista em suas redes de fiéis, que outras imitações poderão estar a caminho?

Mesmo se outros autores reconhecem a perda da autoridade das instituições religiosas em relação ao passado, a religião constitui ainda hoje uma reserva de significados, livremente buscados pelos indivíduos, dentro de uma variedade de percursos e níveis, a partir da valorização maior do simbólico, da intuição, da emoção, do afetivo e da experimentação. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, é o Poder quem define sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Como o Estado de exceção tornou-se regra, é mais fácil e mais simples manipular a opinião das pessoas por meio das mídias e das igrejas, do que ter de impor a vontade pela violência.

Hoje, 28, a Igreja Católica em todo o mundo celebra o Domingo de Ramos. Segundo os evangelistas, Jesus de Nazaré, montando um simples burrico, fez uma espécie de entrada triunfal simbólica na cidade de Jerusalém, denotando um momento culminante do seu movimento popular religioso. Mas qual seria o sentido destas palavras, deste enredo e deste contexto vivido há dois mil anos atrás para os cristãos do tempo presente? Que impactos concretos teriam em suas vidas essa narrativa?

Paulo Freire nos ensina que ler um livro é entrar em diálogo com quem o escreveu. Ler os escritos do Novo Testamento é buscar entrar em diálogo com escritores que redigiram seus textos há dois mil anos atrás, dentro de uma cultura própria, que não é a nossa. Portanto, são textos que precisam ser lidos com critério e certo preparo. Para ser satisfatório o diálogo entre leitor e escritor, quem lê não pode ficar totalmente passivo e assimilar acriticamente e sem a devida pesquisa tudo o que está lendo.

No início, como nos ensina o historiador Eduardo Hoonaert (in As Origens do Cristianismo), o movimento popular religioso iniciado por Jesus se propagou num mundo de expressão semita (judaico). Ocorre que muito rapidamente a ambientação helenista (grega) penetrou com tanta força impondo aos Evangelhos serem escritos em grego, com todas as consequências que uma influência cultural hegemônica como a de então implicava nesta ação: os militantes do movimento de Jesus, mesmo os da primeira tradição, acabaram assimilando muita coisa da cultura grega e de suas visões de mundo.

Outro detalhe não menos importante, Jesus não era membro do clero judaico. Não era um sacerdote. Era uma pessoa do povo. Portanto, seu modelo de liderança era o de um mestre (rabi). Seu ensinamento brotava da convivência com os seus. Depois de sua morte histórica, o movimento cristão passou por um processo de transformação de um modelo rabínico de liderança para um modelo hierarquizado sacerdotal: os mestres tiveram de ceder aos sacerdotes e bispos. Uma das consequências dessa mudança estrutural é que a literatura considerada apócrifa (escondida) foi queimada, impedindo de se estabelecer estudos comparativos entre os escritos, uma vez que a tradição de escritos sobre Jesus não é apenas evangélica, mas também apócrifa.

Assim, tanto a Bíblia como os Evangelhos não caíram do céu. Foram elaborados por escritores. Cada escritor é um criador de palavras, de cenários, de sentidos, baseado em sua cultura e tradições, herdadas pela transmissão entre as gerações. Desse modo, é importante ter presente que os Evangelhos não são relatos vindos do céu. São composições literárias, muito bem intencionadas pela vontade do escritor. Para entender as palavras é muito importante entender o seu significado no texto e no contexto, a partir da perspectiva de quem as escreveu. Quando um contexto muda, o sentido da palavra muda também. Para evitar uma leitura fundamentalista deles, seria importante prestar atenção em pelo menos três fatores que caracterizam uma obra literária: as metáforas, os enredos, os contextos.

Metáforas são as imagens que o nosso cérebro é capaz de captar e traduzir. Quando se diz “Golias era um gigante”, “Noé viveu por 900 anos”, “Sara concebeu um filho aos 90 anos de idade”, nosso cérebro decodifica e transforma essas imagens em uma comunicação compreensível. Os evangelhos estão repletos de metáforas: “Eu sou a luz do mundo”, “Ai de vós ricos”, “Vós sois o sal da terra”. Portanto, é preciso paciência para pesquisar com tenacidade e buscar entender o sentido original das metáforas usadas em um contexto cultural de dois mil anos atrás, numa cultura rabínica e camponesa judaica.

Por outro lado, não há narrativas sem enredo. Os Evangelhos são narrativas históricas contadas oralmente e somente depois anotadas por escrito. Deve-se descobrir o enredo de uma narrativa para entender o seu sentido. Nas bem-aventuranças em Mateus, Jesus fala do alto da montanha; em Lucas ele fala na planície. Já na narrativa de Marcos, Jesus é um personagem enigmático, nunca se sabe ao certo o que ele vai fazer.

Por fim, nos dias de hoje, o perigo mora em achar que a Bíblia e os Evangelhos são um amontoado de frases soltas. Muitos pregadores contemporâneos têm como prática pegar uma frase solta qualquer e comentá-la fora do seu contexto. Uma frase solta só pode ser interpretada ao bel-prazer do pregador. Mas o que dá sentido a um discurso é o seu funcionamento dentro de determinadas condições de tempo, espaço, cultura e intencionalidade. Ou seja, dentro de contextos concretos que lhe proporcionem sentido.

Por que a narrativa evangélica coloca em relevo que Jesus de Nazaré demarcou a sua entrada em Jerusalém, montado num burrico, por meio de uma manifestação pública? Com que intenção? Visando a que objetivos? O que ele queria provar? Para os cristãos de hoje, um Domingo de Ramos vivenciado há dois mil anos atrás será o mesmo Domingo de Ramos em tempo de fascismo bolsonarista? Ficam estas questões no ar.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .