Quando pequeno, não gostava de ler. Aquele amontoado de letras me remetia a tarefas de escola, obrigações… Porém, não podia deixar de ser mais contraditório: meu quarto de dormir, na casa de meus pais, era também sua biblioteca. Havia enormes estantes e prateleiras apinhadas de tesouros insuspeitos para mim. Talvez por esse motivo não os livros propriamente ditos, com seus romances e intrigas, mas as enciclopédias chamavam mais atenção. Ali, grandes livros de capa dura, Delta-Larousse, Tesouro da Juventude, Enciclopédia Conhecer, continham o mundo mas – eis a coisa – com muitas figuras além de letras. Nada de senso estético particular… era preguiça mesmo… Muito preguiçoso!
Mesmo assim compreendia a literatura como um prazer táctil, olfativo e até auditivo. Certa vez, prostrado em um leito de hospital, acometido de uma infecção que – só depois soube – quase me ceifa a vida, contemplava a literatura via auditiva. Muitos anos antes da criação dos audiolivros, minha mãe lia, a meu pedido, a história de José do Egito… traído por seus irmãos. Um interpretador de sonhos no cerne da cultura hebraica… muito antes de Freud! Que incrível. Até hoje, também, tenho o costume de aproximar-me dos livros como algo digno da mais profunda reverência. Gosto de senti-los entre os dedos. Gosto de aspirar-lhes o odor singular de tinta e celulose… Não há Kindle ou e-book que supere, ao meu juízo, a experiência literária integral. Literatura precisa entrar pelos poros.
Anos mais tarde, em virtude de uma viagem a trabalho, visitei o Museu da Língua Portuguesa na estação da luz, em São Paulo. Revi em perspectiva todo relacionamento com a literatura. Uma DR literária que deixaria para trás os malfadados livros paradidáticos de escola… insossos e inócuos. Não sei se pelo aspecto impecável do museu, com sua elegante sedução interativa, ou mesmo se pelo desfecho da visita guiada, algo de epifania e espanto aconteceu. Pouco antes de sair, todos eram conduzidos a um grande galpão onde, em meio à penumbra, se escutava um homem a falar com voz terna: “penetra surdamente no reino das palavras… penetra surdamente no reino das palavras…”. Uma voz onipresente. Não havia outra coisa a fazer: Chorei. É que fui tomado de um súbito desejo de que todos os seres humanos pudessem estar ali e desfrutar daquela reflexão. As palavras me beijaram a alma naquele momento como nunca antes o haviam feito. Foi como se o desembarque na Normandia tivesse ocorrido com bombas de letras, tanques sonoros e excesso de humanidade. Sabe como é querido(a) leitor(a)… Drummond é Drummond. Por ironia do destino, ou não, aquele museu que incendiara meu coração sucumbiria às chamas anos mais tarde. Mais um luto deste coração brasileiro, sulamericano… Continuaria a escutar aquela voz por anos.
Tendo, então, despertado tarde para “o reino das palavras” havia muito a ser feito, muito espaço a ser ocupado, tempo a ser comprimido para dar conta de demandas literárias prementes. A meta principal era de associar interesses pessoais com as necessidades pedagógicas do meu trabalho. Sou professor (por vocação e por karma).
Descobri, então, que as ciências humanas podiam ser muito áridas para espíritos sensíveis. A leitura de textos acadêmicos pode, mesmo falando com coerência, prescindir de sedução, encantamento e humanidade. Neste particular a literatura foi a ferramenta perfeita para traduzir aos estudantes o nosso mundo. E outros também.
A literatura distópica tem-se revelado parceira ideal para abordar nossa realidade por meio do universo ficcional. Como David Icke disse, acertadamente, se quisermos compreender o que ocorre no mundo hoje devemos ler dois livros: “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley e “1984” de George Orwell. Tenho comprovado, com certa dose de desconcerto, que estes escritores, um em 1932 e o outro em 1949 – suas datas de lançamento – descrevem com muita perspicácia nosso contexto geral com décadas de antecipação. Quando lidos pela primeira vez me causaram espanto. Sensação essa que só aumenta com o passar dos anos e a deterioração da geopolítica, democracia e sociedade (dita) civilizada entendida de forma ampla.
Penso que esta seja uma das funções principais da literatura ficcional. É preciso, por meio da arguta observação de seu presente, lançar espelhos de papel a transfigurar nosso entorno. Como um grito, um alerta ou mesmo uma ameaça.
Aqui não é o melhor lugar para descrever, ou analisar em profundidade, tais obras sob a pena de incorrer na superficialidade. Apenas gostaria de deixar registrado que, seja com Huxley, Orwell, Bradbury, Burgess ou até com Saramago e Ignácio de Loyola Brandão, o mundo da literatura pode levar-nos a observar com mais atenção e penetração crítica, não o mundo como gostaríamos que fosse, mas a verità effetuale de Maquiavel. É que ao se refletir o grotesco que há no mundo pelo grotesco que há nas páginas, revela-se uma das mais nobres funções dessa arte: indignação e pulsão de mudança. Cada página que se lê é uma pétala retirada dessa exótica flor-livro, substrato – amargo ou doce – do roteiro da vida. Como dizia meu amado Belchior: “Sons, palavras, são navalhas”. A literatura deve ser tudo menos inofensiva. Quem precisa mudar não deve pensar em preservar sua própria carne.
Que sejam bem-vindas, então, as suaves lâminas da literatura!
Cleyton Monte
Simplesmente sensacional! Tocante, forte e necessário! Amo distopias!
Renato
Cleyton! Querido amigo. Obrigado pelo feedback.
Também as adoro, mas preferiria que elas se resignassem as páginas dos livros, não em colonizar nosso presente. Sigamos.
Abraços!
Renato
Poxa, Sérgio, obrigado mesmo! Meio exagerado, né? Kkkk
Abraço!
Sérgio Costa
Isso sim é um apelo literário. “Quem precisa mudar não deve pensar em preservar sua própria carne.”
Sensacional, Renato. Parabéns!!!