Pode o otimismo ser venenoso?

Como é fácil confundir uma virtude com o seu contrário. Mas quem, em sua sã consciência, consideraria a qualidade de ser “positivo”, de pensar coisas boas para atrair o bem, como algo ruim? Parece mesmo um contrassenso evadir-se da “positividade” em um mundo esvaziado de felicidade. “Fique você com a mente positiva / eu quero a voz ativa / ela é que uma boa” dizia Belchior. Mas isso foi em outra época quando padecíamos sob a ditadura. E aquilo ficou, definitivamente, no passado. Certo? Ça depend. Na verdade, posso entender o que fez o poeta de Sobral ter ressalvas à “força do pensamento” e “essas coisas do oriente”. É que, mesmo sabendo o valor da alegria, às vezes um “tango vai bem melhor que um blues”. E, não! Não é verdade que regimes ditatoriais do passado estão superados, inelutavelmente. Não mesmo. Eles só mudaram de lugar, espraiando-se, como bolor, a outras esferas e estruturas sociais. Não é mais necessário que formas autoritárias se apresentem apenas no terreno na política formal. As duras tréplicas da história nos fizeram reconhecer o que não queríamos: não é mais o Estado que alberga o totalitarismo. Este costuma desfilar, agora, livre e orgulhoso de si mesmo na vida, arte e cultura. É essa a constatação quando vemos a peça “Gratiluz – a tragédia” e nos permitimos mergulhar no excelente texto de Rogério Mesquita. Por várias razões resolvi conferir o espetáculo na Casa da Esquina, aconchegante espaço do Grupo Bagaceira. Decisão acertada e fruição de um teatro em estado puro, plateia e atores em corpo-a-corpo.

Não há muitas distrações ou metáforas. Não há fillers ou firulas textuais e cênicas. O cenário minimalista convida à imersão e as atuações de Rogério, Isabella Cavalcanti e Luiza Torres confirmam a coesão de um texto maduro e consistente. A entrega dos atores (membros originais e fundadores do famoso Grupo Bagaceira) é tocante e tudo nesta produção inscreve-se como signo quixotesco da luta valorosa dos independentes. Ah, esses soldados da arte! É fácil compreender os motivos pelos quais o Prêmio Ceará Encena (em sua 6ª edição) os recompensou em três categorias: melhor ator, melhor atriz e melhor espetáculo adulto.

A impressão que se tem é que, tanto o texto como as atuações, eram molas comprimidas por anos e negares da vida e, agora, são liberadas com potência e urgência de quem tem muito a dizer. É isso que, em minha opinião, deixa tudo mais intenso. “Gratiluz – a tragédia” não é só um grande fruto de artistas experientes e atuações impecáveis: é um grito! A arte em estado de urgência “pós-pandêmica”. A delação de absurdos que, por ser baseada em realidades palpáveis, tornam-se ainda mais oportuna e desconcertantemente relevante.

Aristotelicamente falando trata-se de um drama, mas é legítima a classificação do título. A “tragédia” está em perceber o tamanho da corrosão moral perpetrada em variados níveis dos quais a peça é apenas o espelho estético. A trama corre pela interação de Neo (supervisor da empresa de telemarketing Gratiluz) e suas duas funcionárias subalternas, Graça e Lúcia. Objetos de toda sorte de censuras, abusos, assédios morais, ageísmos, machismos, misoginia e positividade tóxica, as personagens de Isabella e Luiza equilibram-se em um trabalho degradante pela mais absoluta necessidade material. Todos os seus dramas pessoais são sufocados pela imposição de metas inexequíveis. O terrorismo laboral de que são alvo traveste-se de um ardiloso estímulo “motivacional” repressor. Em uma das cenas mais chocantes Graça e Lúcia são cerceadas em sua própria voz e expressão facial autêntica pela imposição do uso de uma máscara de sorriso. O mais perverso desta sociedade mercantil-disciplinar é imputar culpa de seus insucessos mercadológicos aos trabalhadores e “colaboradores”, desconsiderando as estruturas econômicas falidas que lhes subjazem. Não existem crises, não existem “negatividades” ou problemas para os (neo)feitores das empresas da sociedade mercadológica pós-moderna. Há apenas “soluções” que se alcançam com um sorriso na face e a supressão violenta de quaisquer demandas do réel lacaniano que se possam querer irromper. Ah, não! Demonstrar humanidade é ser fraco e no “mercado” precisamos ser fortes, ser águias para voar alto!

A colaboradora Graça (Isabella Cavalcanti): divulgação

Mas o gap de humanidade não está “só” na repressão desferida pelos adeptos do sistema e privilegiados hierarquicamente. Como diria Orwell há uma censura ainda mais deletéria, realizada pelo próprio dominado contra si mesmo e contra seus iguais. É aquilo que se insere em nós quando normalizamos o abuso, quando incorporamos uma lógica dominante e passamos da possibilidade de luta por liberdade à adesão medrosa aos esquemas de opressão. Mas não é esse o ardil preferencial da sociedade mercantil para desarticular politicamente seus subordinados? Agora, além de todos serem vigias e vigiados, delatores e delatados, somos também instados à vergonha de cultivar elementos que nos fazem humanos: a capacidade de sentir luto, tristeza e empatia. A mulher culpada pelo estupro que sofre por causa de seus gestos e roupas. É a ditadura da suposta felicidade, onde nos sentimos obrigados a fazer parte de um rebanho com pensamento unidimensional, obrigados livremente a uma adesão à moral permitida dentro ou fora de nós.

Gratiluz – a tragédia é um tapa na cara que muitos não sentirão. Sair incólume deste espetáculo, porém, diz mais sobre o nível de desumanização do espectador que da qualidade intrínseca da peça. Há muitos que não verão ali motivo de escândalo: e isso, em si, é o próprio escândalo. Não me causaria espanto que muitos digam: “deixa de mimimi!” “tem que bater meta mesmo!” “tem que deixar os problemas do lado de fora!” “a porta da rua é a serventia da casa!” “se não quer trabalhar assim, tem quem queira!”. Pois é… o que considero como “tragédia”, a nossa tragédia social, é saber, por experiência própria, que este discurso, esta lógica de positividade tóxica é “arroz de festa” em várias empresas. Institutos de comércio de “educação”, de “saúde” e de “fé” celebram a ditadura da “felicidade” e o “cala a boca e trabalhe!” da empresa “Gratiluz” (que agora me parece menos uma obra de ficção e mais uma pesquisa etnográfica dos assédios morais onipresentes). E não esqueçamos que a demonização da falha e individualização do fracasso vivem como preceito triunfante em determinadas tendências de “treinamento” pessoal para o sucesso em todas as áreas da vida e certas doutrinas pseudo religiosas.

Devo advertir, entretanto, que não considero sábia a oposição prévia ao que recebe a qualificação leiga de “pensamento positivo”, “cocriações quânticas” ou efeitos mensuráveis da “positividade” por meio da meditação e outras práticas chanceladas pela ciência. Descobertas recentes no campo da epigenética apoiadas por especialistas de vanguarda como Popp, Montagnier, Gariaev e Lipton apontam para outra direção. Existe sim uma forma responsável de se equilibrar as emoções e pensamentos assim como de gerar bem-estar e reforço imunológico por meio de elevadas frequências cerebrais. O que critico aqui (e o que acredito que faz a peça muito bem) é a imposição de uma aparência de positividade, cínica e desumana, que visa a exploração do outro e sua diminuição à condição de mero objeto laboral descartável no pior estilo gaslighting. Esta ortopedia emocional, castradora e viciada, como um instrumento de dominação covarde e para a qual não há solução imediata ou panaceia. O riso diabólico da personagem “Neo” ao fim do espetáculo revela também uma certeza: esta “visão de mundo” é hoje triunfante. É justamente isso que nos faz sentirmos tão impotentes frente a Gratiluz. E é por isso que ela é tão necessária como uma denúncia, um grito e um alerta. Mas então uma dúvida me chega ao pensamento: se já está tudo contaminado, se a ditadura não está fora, mas dentro dos próprios corpos e mentes… existe uma saída à brutalidade e perversidade da história humana? Sobre isso não posso afirmar, mas assistir à peça “Gratiluz – a tragédia, com os olhos, ouvidos e corações abertos, é um bom começo”. Cuidemos do que ainda há de humano em nós.

Gratiluz – a tragédia
Texto e direção : Rogério Mesquita
Elenco : Isabella Cavalcanti , Luiza Torres e Rogério Mesquita
Cenário : Rogério Mesquita
Figurinos : Yuri Yamamoto
Iluminação: Aline Rodrigues
Operação de Som e Luz: Rogerio Mesquita
Fotos e Design Grafico: Tim Oliveira
Assistente de Produção: Carla Sousa
Produção : Isabella Cavalcanti e Rogério Mesquita
Uma produção Patuleia Criativa

Renato Angelo

Mestre em políticas públicas, professor universitário, pesquisador, poeta e contista

1 comentário

  1. Priscila Nottingham

    Considerações muito lúcidas e assertivas. Sem dúvidas a positividade tóxica é adoecedora e cada vez mais naturalizada, estilhaçando ainda mais uma existência esvaziada de significados . Parabéns aos produtores e participantes da peça e ao autor do texto Renato Ângelo.