Em “Sempre Paris”, no capítulo intitulado “Antes que me esqueça”, livro sobre o qual escrevi aqui semana passada, leio fatos curiosos sobre os generais presidentes. Tomo a liberdade de recontá-los aqui.
No auge da ditadura implantada no País com o golpe de 64, dois de nossos generais presidentes visitaram a França na tentativa de vender bem a imagem do governo militar: Ernesto Geisel e João Figueiredo. O primeiro, em 1976. O Palácio do Elysée, ressabiado com as notícias que chegavam do Brasil, e prevendo manifestações contra a comitiva brasileira, naturalmente associada aos horrores praticados pelos militares contra civis (torturas, prisões e perseguições impensáveis), tratou de hospedar o presidente Geisel no Grand Trianon de Versailles, uma forma de evitar ocorrências desagradáveis ao protocolo estabelecido para os dias da visita.
Na tentativa de obter dividendos políticos do que era mesmo um vexame, a embaixada brasileira lançou mão de um tolo expediente: “Pela primeira vez o Palácio de Versailles é disponibilizado a um chefe de Estado plebeu”, alardeou aos quatro ventos.
Relevante, não fosse, antes de qualquer outra coisa, uma prova de desprestígio para a comitiva do presidente brasileiro, afastada do Palácio do Elysée como uma visita indesejada pelos franceses, notadamente os estudantes, à época participando ativamente dos acontecimentos políticos no País.
O mais ridículo, sabe-se, ocorrera na véspera da chegada do presidente Geisel a Paris: numa entrevista à televisão francesa, Geisel reconhecera que de fato havia no seu governo “restrições à liberdade”, emendando sua fala com uma declaração que entraria para o anedotário das relações entre os dois países: “Mas só para quem quer fazer subversão!”. Como se não bastasse, ampliou o arco de suas declarações estapafúrdias com afirmações hilárias aos ouvidos de quem, minimamente, tivesse do Brasil quaisquer informações: “O Brasil vive em liberdade, até demais”.
Giscard D’Estaing, então presidente da França, retribuiria a visita dois anos depois, tempo suficiente para que o regime militar cometesse atrocidades que teriam repercussão internacional: líderes da esquerda brasileira continuavam a ser perversamente torturados e mortos, muitos deles tiveram seus corpos atirados ao mar e jamais foram localizados, a exemplo do que ocorrera a Rubens Paiva, em 1971.
Geisel lançara o famigerado Pacote de Abril, um conjunto de leis outorgado pela Presidência da República em 13 de abril de 1977, que, entre outras medidas, fechou o Congresso Nacional.
O jornalista, professor e dramaturgo Vladimir Herzog foi assassinado em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo.**
Em janeiro de 1981, foi a vez de João Figueiredo visitar os franceses. Era fim de governo de Giscard D’Estaing, e o Brasil começava a viver dias melhores. O presidente brasileiro levou à França uma comitiva gigantesca — algo em torno de 150 pessoas, sem contar mais de uma centena de jornalistas e numerosos empresários —, que ficaria hospedada no Hôtel Crillon, um dos mais caros do mundo.
Por uma infeliz coincidência para a comitiva oficial do Brasil, a chegada de João Figueiredo a Paris ocorreria no mesmo dia em que chegava à capital francesa o então líder sindical Luiz Inácio da Silva, cuja agenda já registrara, na mesma viagem, encontros com o papa João Paulo II, o polonês Lech Walesa e o italiano Enrico Berlinger.
Em seu premiadíssimo “Sempre Paris”, livro a que fiz alusão na cabeça do texto, Rosa Freire D’Aguiar narra como se deu a visita de Lula à França: “Ele [Lula] chegou a Paris uma hora depois de Figueiredo. No dia seguinte, enquanto um Lula todo encapotado dava na sede do sindicato DFDT (Confédération Française Démocratique du Travail) uma coletiva lotada de jornalistas, não longe dali o general se encontrava com o empresariado francês. Lula encantou os jornalistas. E a nós também: refiro-me a Celso [Furtado] e a mim, quando o recebemos, na companhia do sociólogo Francisco Weffort, então quadro do PT, em nossa casa”.
E desfere: “Por uma viravolta feliz, pouco mais de vinte anos depois o sindicalista seria o presidente do país do general, e construiria a melhor imagem que o Brasil já teve no exterior”.
*Passé composé é um tempo verbal composto do francês. É formado pelo auxiliar être (ser) ou avoir (ter) mais o verbo no particípio passado. Refere-se a um fato ocorrido no passado que se prolonga até o presente.
**Herzog apareceu morto numa cela do Doi-Codi. O laudo médico atestava suicídio por enforcamento. A farsa jamais foi aceita pela sociedade, que prestou ao jornalista uma grande homenagem. Sobre o fato, recomendo aos interessados o incontornável “Meu querido Vlado, a história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração” (Objetiva, 2015), de Paulo Markun.
JULIO CESAR MARTINS SOARES
Alder é um intitlectual de altíssima grandeza, nobre de alma e escritor sem tamanho. Acrescenta muito lê-lo. Abraço, Júlio Soares.
Carlos Helvécio T.Bezerra
As voltas que o mundo dá.Especialmente em Paris.