O estrondoso sucesso do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Moreira Salles, jogou luz sobre o drama familiar de Maria Eunice Facciola Paiva, elevando-a, com justa razão, à condição de uma verdadeira heroína. É de fato impactante acompanhar a trajetória da viúva do ex-deputado Rubens Paiva e de como essa mulher extraordinária lutou para criar os cinco filhos do casal — Vera Silvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo —, como se mostrou incansável na determinada busca pelo paradeiro de seu marido e posterior reconhecimento, pelo Estado, de ter sido ele, depois de cruelmente torturado, assassinado pelos militares em janeiro de 1971.
Ao optar por realizar um filme sobre Eunice Paiva, emblematicamente representada por Fernanda Torres, papel que lhe valeu o Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama, ainda que evidenciando os horrores ocorridos durante a ditadura militar no Brasil, com a sutileza e fina sensibilidade estética de que é possuidor, o cineasta compreensivelmente evitou mostrar cenas de tortura e, mesmo, as circunstâncias em que se deu a morte do ex-deputado, eleito pelo Partido Socialista em 1962 e cassado dois anos depois.
O que poderia ser irrelevante do ponto de vista cinematográfico, enseja, no entanto, um detalhe que ainda mais empresta ao filme qualidades dignas dos melhores elogios: não se trata de uma adaptação como tradicionalmente a conhecemos, isto é, o processo de transformar uma história narrada em livro para uma mídia audiovisual, especificamente, como é o caso, para o cinema — mas de uma “leitura” pessoal, uma visada subjetiva do conteúdo de um livro.
Ao fazê-lo, o cineasta redimensionou o livro, criando a partir dele uma outra obra, nascida de sua interpretação e realizada de conformidade com elementos advindos do seu trabalho como artista, da sua inventividade, do seu tirocínio estético, extraindo dele o que lhe parece real, essencial, útil, sem perder de vista a ideia em que está plasmado o filme. Por isso, fez com o substrato da narrativa de Marcelo Rubens Paiva, autor do livro, uma verdadeira obra-prima cinematográfica, cuidando com maestria de cada plano, cada enquadramento, cada movimento de câmera, cada detalhe no uso da luz e do som. Perfeccionista, realizou uma obra de arte irretocável, revelando as atrocidades de um regime arbitrário sem que fosse preciso, panfletariamente, derramar sangue no écran. Coisa de refinado artista.
Mas o leitor haverá de perguntar: o que há no livro sobre o assassinato de Rubens Paiva que não se vê no filme? A título de exemplo, pois, vou ao texto de Marcelo Rubens Paiva, precisamente à parte dois do texto, no capítulo intitulado “É a peste, Augustin — Perdão, tenho que morrer”, em que o escritor descreve, à força de um estilo literário enxuto, preciso, referencial, a morte de seu pai: “Dizem que foi torturado ao som de ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos, música que a minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava [presa] lá”.
E segue, desfechando o capítulo com um parágrafo desconcertante: “Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte… É a peste, é a peste, Augustin (alusão à música alemã que Rubens Paiva costumava cantar). Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva, Rubens Paiva, Ru-bens Pai-va, Ru… Pai. Até morrer”.
A demonstrar sua habilidade como escritor, talento já conhecido desde a publicação de “Feliz Ano Velho”, em 1982, livro de estreia, pela metade do referido capítulo, lançando mão de um artifício narrativo a um só tempo bastante expressivo e literariamente feliz, Marcelo Rubens Paiva muda o foco narrativo sem qualquer sinalização (travessão, aspas etc.), num exemplo clássico de discurso indireto livre* que empresta ao conteúdo narrado um peso dramático adequado e extremamente comovente: “Quem tem um filho faz de tudo para se preservar, para dar suporte e acompanhar o crescimento daquele que mais ama. O que eu fiz? Por quê? (…) Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que pôs tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu… Perdão. Não vou ver vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas…”.
Com simplicidade, sem perder de vista o efeito dramático perseguido, Marcelo levanta a reflexão dolorida: um gesto de covardia, ir embora do país, como lhe aconselhavam fazer, teria preservado sua vida, como a de tantos outros? A que “falha de caráter” se refere no texto? Como abrir mão de um ideal, do sonho de viver num país mais justo, mais humano e mais livre? Sob esse aspecto, por sinal, é que narra como Rubens Paiva, durante uma escala de voo no Brasil, a pretexto de comprar cigarros, foge do aeroporto para reencontrar a família.
A propósito, não à toa é que Walter Salles ocupa o primeiro terço do filme a mostrar o convívio familiar, a descontração de um pai bonachão, o chefe de família exemplarmente dedicado à mulher e aos filhos, num ambiente de profunda felicidade da família classe-média alta de Rubens Paiva.
Essas cenas, ressalte-se, foram gravadas com Super-8**, conferindo ao quadro uma textura ao mesmo tempo poética e nostálgica, numa minúcia formal que revela fidedignidade ao livro e notável capacidade criativa, artista pleno que é o cineasta Walter Moreira Salles.
*Modalidade narrativa que mistura o discurso direto e o indireto, ensejando ao narrador expressar os sentimentos e pensamentos da personagem.
**Filmadora portátil lançada pela Kodak em 1965 e muito usada nos anos 1970.
Uma resposta
Análise primorosa, mestre Alder. Incentivando-nos a revisitar o livro de Marcelo Rubens Paiva. Bravo! Bravíssimo!