Quando comecei a pensar em escrever uma crônica sobre ESPAÇO, com este nome, eu revirei meus olhos em interrogação. Sim, haveria algo sobre espaço com que uma não-arquiteta pudesse preencher páginas em branco?
Ora, eu escreveria sobre meu quarto, minha sala, o espaço entre a mesinha e a estante… Ah, eu não sei. Vamos, tente, preencha todo o espaço em branco com expressão necessária, pelo menos para quem não entende o design e… ou a própria vida. Pensava comigo mesma, indo até a padaria, “vamos brincar de pular buraco? Pode ser, mas ande atenta, olhe pro lado e pra frente, cuidado com a superfície, a atmosfera pode estar quente”.
Lá vai outra palavra, outra frase de que eu posso me orgulhar ou modificar. Isso soa familiar? Sei lá, vamos lá, o espaço entre a letra, o gozo e a canção, os buracos da cidade ou os buracos do meu coração.
A folha em branco é um dos espaços mais iluminantes, é encantada, indivisível e, portanto, difícil de preencher. O nosso consolo é que o espaço em branco também nos permite imaginar – passam os minutos, as ideias, uma palavra. Passam-se horas, dias, meses e vem um livro ou a palavra que nada diz, ou diz assim… Qualquer coisa lírica, sentimental em parágrafos quase rituais.
No mesmo tempo, a cidade cresce, vem o inverno, o lixo emerge e lava ou dissolve o velho asfalto de velhos consertos.
Espaço em branco, será que tem sombra? Talvez concreto, viadutos e avenidas em “nós” de cordas de caranguejo.
Uma canoa, onde cabe mais que um remador, o balé dos terminais e dos ônibus circulares, um espaço entre a BR, Benfica e Messejana, entre a periferia e a Aldeota – que é perto e ao mesmo tempo longe -, como um golpe de luz real, nada tem de igual.
Cidade, espaço em que estar não estando – inusitado -, dá-nos qualquer explicação. Tudo é perto e, de vez em quando, o medo da violência torna tudo radicalmente distante.
Hábito, habitat, morada.
Espaço, pelo qual a vida prossegue. Fortaleza, para um estrangeiro, um lugar onde mora uma pessoa incomparável. Fortaleza não apresenta, à primeira vista, muitos atrativos. Quase sem edifícios históricos, sem bairros pitorescos, sem morfologia particular do terreno.
A entrelinha entre o choro e o travesseiro. O espaço entre o copo, a alegria e as artes saturnais. O céu e o inferno, a antiga luz sobre os velhos invisíveis cabarés do centro.
Cidade, permite-nos viver além da margem. Elabora os teus espaços de tal modo que os nossos filhos se recomponham.
Ou será ainda um espaço entre a make e o brio, o prime, a fumaça e o rivotril? Oh, não! Vão de cachaça, é a menos tóxica de todas.
A cidade, o bairro, a rua, farmácia na e em toda esquina, tem igreja e açaí. Praia sempre teve, livros e escritores também, o vento, ah, esse é que se dissipou entre o concreto.
Edifício São Pedro grita em vão pelo balão de oxigênio.
O espaço entre a boca e o café. Os sintomas deveras inquietantes da mão com o lápis e o tempo-espaço entre Alba, Ângela, Bárbara e Ana.
O instante de desespero das árvores urbanas sondadas pelo machado do capital.
O lado de fora da noite, a janela entre a sombra e a ponte de aço.
A areia onde o surfista finca a prancha e mira’amar o mar tentando descobrir se o espaço, longe de ser passado, pertence todo ao futuro, é a mesma areia que muitos turistas frequentam em Fortaleza, pisam aqui por causa das praias – mas isto não faz parte da cidade no sentido urbanístico.
O espaço parece apresentar pouca estratificação histórica. Muitos rasga-céus, muitas favelas, muitos carros.
Depois se descobre que o valor da cidade está nos seus moradores, está no uso que eles fazem da cidade.
Um espaço onde se deve estar com medo não é um espaço público. Quase nem é um espaço.
A violência, fruto de 50 anos de desenvolvimento urbanístico e econômico absurdo, assassinou o espaço. O espaço se tornou algo que se deve atravessar rapidamente e com vigilância. “Os passeios do viandante solitário”, como os de Jean-Jacques Rousseau, se tornam impossíveis em um espaço perigoso.
Ninguém pode ter um juízo mais importante sobre o espaço do que outra pessoa.
Como eu gostaria de poder me perder nos meus pensamentos caminhando na cidade, sem preocupação onde ando ou que horas são.
Depois, pensei que é absurdo dizer, como disse ao início, “sim, haveria algo sobre espaço que uma não-arquiteta pudesse preencher páginas em branco?” Existe, sim, pois não precisa ser arquiteta. Não precisa expertise. Não podem existir especialistas em espaço. O espaço é uma condição fundamental da existência, como o tempo. É um bem comum da humanidade.
Imagem: divulgação/wikipedia
Uma resposta
Maravilha de crônica Heliana Querino.
Perfeita a exposição sobre o lado de fora, infelizmente é melhor ficar do lado de dentro, rss. Nossa cidade não mostra mais a beleza de antes. Fica então as lembranças.