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O ESPECTRO ENTEDIADO DO MUNDO SEM TETO: A OBRA DE EDUARDO FRANCELINO, ATÉ AGORA (XI)

LVIII
Aristóteles reduzia ao seu próprio absurdo as ideias dos seguidores de Euclides de Mégara. Os megáricos chamados não acreditavam na diferença entre a potência e o ato nem da mudança dos estados. Diziam, portanto, que ser um arquiteto só se pode dizer que é um arquiteto enquanto constrói a casa; pode vir a construir uma segunda e uma terceira, mas só durante a construção se deve dizer com certeza que o arquiteto é um arquiteto. Uma profunda ignorância sobre o assunto se instauraria no seu ser sempre que se ocupasse de outra coisa ou quando não se ocupasse de nada. Se vissem Sócrates dormindo poderiam mesmo dizer não que um filósofo dormia, mas que dormia um homem sem pensamentos, capaz apenas de dormir, e nem sequer de sonhar com um mundo das ideias; dormindo, aliás, já nem seria o Sócrates de todos conhecido, que tanto interrompia os discursos alheios com perguntas; aquele homem que dormia, dormindo, não poderia jamais ser Sócrates. Homem, aliás? Talvez por lhe restarem as formas, mas os atributos, no sono, de nada valeriam. Logo, no homem que dorme, independente de quem seja quando acordado e de como se chama, tudo que veem é a criatura inconsciente e vegetativa. Diz Aristóteles: caminhar depende também de se poder não caminhar; o ato não anula uma potência oposta, com a qual apenas se reveza. Dos arquitetos diz: sua capacidade pode se perder com o passar do tempo, pelo esquecimento ou pela enfermidade, mas nunca pelo mero ato do repouso. Laborioso, poderia acrescentar: não fossem os males conhecidos da velhice a tendência seria sempre que a dedicação a uma arte ou ofício potencialmente aprimorasse o ato: seria mais confiável o arquiteto que trouxesse a experiência de cem casas que aqueles que tivesse a experiência de dez casas construídas. Ainda se poderia dizer: sua fama dependerá de quantas casas ficaram de pé e por quanto tempo (também a má prática de um ofício, nessa lógica, cria raízes). Mas mesmo partindo de um paradoxo pouco plausível os megáricos não teriam querido dizer algo um pouco mais sutil do que poderia desconfiar um pensador dedicado demais a separar o certo do errado? Aristóteles, seguro do que já tinha produzido e daquilo que ainda poderia produzir, ainda que não imaginasse a necessidade do exílio, tinha a certeza de que quando dormisse era um filósofo que estaria dormindo, que quando se retirasse ou fosse afastado da sua atividade seria um filósofo aposentado, e que depois que morresse seria um filósofo morto (ainda que o nosso triste conhecimento biológico da morte nos leve a pensar, sem mais explicações, que estavam corretos os megáricos (mas ainda será possível dizer mais alguma coisa)). Aristóteles e o seu tempo pensava os fazedores como técnicos (foi a sua sociedade que criou a palavra); e mesmo a assinatura do técnico era um traço de união entre o fazedor e a coisa feita (e apenas na medida exata da lenda uma cisão do ser com o ser). — Uma dupla ética para poetas e contadores de histórias: cada momento competente em que se alcança algo ao menos semelhante a uma verdade pode sempre ser o último. Uma dupla ética, eu disse: engano. Os que o tempo todo produzem apenas tentam adiar em vão o momento inevitável em que já não haverá o que dizer, e muitas vezes farão isso repetindo as mesmas coisas.

LIX
Diz Tolstói ao final de uma narrativa de guerra difícil de classificar entre o conto e a crônica: seu herói não é nenhum daqueles homens que, entre a bravata e o medo, o próprio heroísmo em si e o cálculo mais mesquinho, enfrentam a morte alheia e a possibilidade constante da própria morte rápida e violenta, e precisam considerar o horror uma parte do cotidiano; o verdadeiro herói da história, diz Tolstói, é a verdade, na medida mesma em que se torna uma coisa diferente da beleza e do orgulho, oposta ao confessadamente visível. A guerra é o avesso do que ainda quer que pareça Napoleão e a sua mitologia romântica de heroísmo, e como se não bastasse a sua verdade em si a realidade da guerra ainda põe a nu coisas do ser humano que em outras situações mais facilmente ficariam encobertas: é preciso que a vida, sob ameaça constante, apareça na sua real dimensão frágil e pouco significante. Tolstói, em nome dessa verdade, é o mais detalhista possível. Nas suas palavras de testemunha estão as memórias de gente já esquecida e abandonada em vida: os mais empedernidos ainda se iludem com a possibilidade da memória heroica; enquanto os mais pobres, cujo heroísmo é difícil de aceitar, porque a sua figura não é a própria figura do que se espera de um herói, os verdadeiros heróis russos de que deseja falar Tolstói, sabem que o melhor que se pode fazer diante de uma guerra é sobreviver e esquecer. — Mas o seu excesso de detalhes factuais e até mesmo bem sinceros serão sempre aquilo que chamamos de verdade?

LX
Dizia mais ou menos Verlaine sobre Rimbaud: a linguagem permanece clara ainda que a ideia se torne obscura.

LXI
Mentimos por medo ou pela ilusão da esperteza, quando não pela mais pura sensação de tédio. O trágico é quando as mentiras são a moldura de verdades que não alcançamos. Ou os anjos existem de verdade ou surgiram na mente porque não podem surgir de outro modo.

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