No final do século XIX, a linguagem cinematográfica nasce documental, muda e em tonalidades ligadas ao preto e ao branco. Na época, dois irmãos franceses, os Lumiére August e Louis, inventaram o “cinematógrafo”, equipamento com capacidade para exibir imagens em movimento. A partir daí, passaram a filmar documentários rudimentares de aspectos do cotidiano com duração de um ou dois minutos.
Historicamente, em seus primórdios, há relatos de pesquisadores que sustentam ser a linguagem do cinema considerada uma atração menor, uma mera novidade da tecnologia, ou, ainda pior, “uma invenção sem futuro”, como declararam em certa ocasião os Lumiére.
Na origem, o tema da primeira exibição pública de um filme tem por título “A chegada do trem à estação de Ciotat”, e foi realizada em 28/12/1895, em Paris. Desde seu início, há conexões dessa linguagem estética, expressiva e polifônica com diversos outros movimentos artísticos, como o surrelismo, expressionismo, construtivismo, além da música – só lembrar que, no início, um pianista tocava ao vivo como “trilha sonora” durante a exibição de um filme, e também com a literatura.
Sobre esse último aspecto, sabe-se que texto literário mantém fortes vinculações com o cinema, haja vista as diversas produções fílmicas que têm como roteiro narrativas de obras produzidas e lançadas em todo o mundo. Os exemplos são muitos. Desde David W. Griffith e sua conexão com o estilo da literatura de Charles Dickens (em torno de questões como a mimese e a montagem paralela, ou seja, cortes na história narrada “trocando” um grupo de personagens por outro), passando por Nelson Pereira dos Santos e o clássico Vidas Secas – de 1963, lançado 35 anos após o livro homônimo, de Graciliano Ramos, o qual conta realidades históricas perfeitamente identificáveis no Nordeste brasileiro, como a seca, a situação social precária do nordestino e a exploração do trabalhador; além de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance lançado em 1881 por Machado de Assis, e que procura desnudar as aparências da burguesia do século XIX ao narrar as lembranças em vida de um defunto; tal obra já foi transposta para o cinema por vários realizadores, dentre eles, André Klotzel.
A partir desse contexto histórico citado, compreende-se ser a linguagem fílmica uma arte relativamente nova. E Firmino Holanda (2010), professor da Universidade Federal do Ceará, já relatou, no ensaio “Vidas Secas: entre a literatura e o cinema”, publicado na obra “Fragmentos: poemas e ensaios”, de autoria deste pesquisador-cronista, que o escritor Máximo Górki teve seu romance A Mãe filmado por Pudovkin. Nesse sentido, Holanda sustenta que o filme baseado em tal obra literária é uma das primeiras afirmações do cinema enquanto arte autônoma.
Nessa perspectiva, tem-se como certo que, ao longo de sua existência, o cinema e a literatura se beneficiaram mutuamente, ocorrendo trocas de influências e frequentes intercâmbios. Ou seja, há nesses campos artísticos uma proximidade evidenciada em diversas instâncias: a presença de personagens, uma sequência de eventos narrados com determinação temporal/espacial, o tempo de projeção como tempo de abordagem leitora, o narrador e o realizador cinematográfico, o leitor e o espectador.
Em tal conjuntura, este texto destaca que os pressupostos que configuram a literatura podem ser potencializados pela linguagem cinematográfica, que busca trabalhar o universo da palavra apresentando-a em meio aos recursos imagéticos e musicais. Assim, dessa forma, descreve-se plasticamente o ambiente temporal da história, destacam-se o espaços físicos e geográficos em que os protagonistas atuam, analisam-se visualmente as definições corpóreas dos personagens, observam-se as diversas situações do enredo sugeridas pela trilha sonora.
E, em torno dos estudos do cinema e dos estudos literários, um espaço transdisciplinar, acrescente-se a questão da intermedialidade. Segundo Adalberto Müller (2012), trata-se de um campo teórico concretizado através das relações entre mídias variadas, como a oralidade, a televisão, a linguagem radiofônica, a Internet, as artes – inclusive a literária, e outras ainda.
Todo esse contexto envolve perspectivas de comparação entre o cinema e a literatura, mídias que ainda ocupam um espaço importante nas sociedades humanas. E, em todo o quadro, demandam compreensão relacionada a processos de transformação, citação, hibridação e de adaptação entre as duas mídias. Nesse sentido, convém destacar que assistir a um filme pode significar, muitas vezes, considerar a metamorfose de questões estéticas relacionadas à escrita (e portanto: a esquemas literários), ao jogo de imagens, bem como à fotografia e à própria forma cinemática. Porém, acrescente-se ainda que, mesmo fundindo pressupostos básicos, o cinema e a literatura são campos independentes. Portanto, utilizando uma expressão relacionada à Linguística, são textos que funcionam como um “todo completo de sentido” e, a partir daí: válidos por si só.
Por sua vez, estudiosos como o já citado Müller (2012) enfatizam o descrédito que existe, atualmente, com a questão da adaptação. Segundo ele, tal questão é irrelevante quando tratada com superficialidade. Como argumento principal, esse pesquisador cita a falta de preparo dos literatos para com a linguagem técnica da cinematografia, complexa em sua formação, além da falta de pesquisas do profissional do ramo de literatura sobre os meios de comunicação de massa.
De qualquer forma, com o advento e valorização do universo digital e a hibridização intertextual de discursos criativos que ele tanto potencializa, os estudos e pesquisas sobre as relações entre cinema e literatura continuam à toda tona. Tal aspecto surge advindo da compreensão de que aos seres humanos interessa tentar compreender a realidade em que vivem. Nessa perspectiva: cinema e literatura trazem possibilidades reais de compreensão de mundo. Assim, por mais que o universo ali seja ficcional, há relações presentes entre pessoas, situadas em campos políticos, econômicos e culturais. E isso é representativamente simbólico da multiplicidade de ações humanas atuantes socialmente.
A compreensão citada, por sua vez, igualmente representa uma tentativa legítima – ou, vá lá que seja, um esboço – de possibilidades de autoconhecimento. A explicação? O envolvimento com as artes nos apresenta o poder da contemplação, da meditação. Ainda mais porque as linguagens artísticas também nos analisam, nos convidam a percebê-las, de alguma forma nos constituindo, nos fundando; como destaca o historiador, crítico de arte e filósofo francês Georges Didi-Huberman em sua obra “O que vemos, o que nos olha” (1998).
Portanto e em suma: se o real é duro e difícil, ainda mais em tempos de violência protofascista, assistir a um bom filme jamais poderá ser uma atitude de escape. Ao contrário! Afinal, a “ilusão” que tal linguagem proporciona pode funcionar como elemento catalisador de reflexões – proporcionando o crescimento pessoal do espectador, bem como ampliando seu repertório cultural e diversificando sua visão de mundo. Ou que também possa funcionar como antídoto contra a dor – metáfora agônica para as dificuldades do mundo, ou até mesmo como um excelente veneno antimonotonia, para usar uma expressão do grande Cazuza.
“Cineme-se”, cara leitora e caro leitor!
Carlinhos Perdigão
Referências bibliográficas:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Em: O que vemos, o que nos olha. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
HOLANDA, Firmino; apud PERDIGÃO, Carlinhos. Em: Fragmentos: poemas e ensaios. Fortaleza: Premius, 2010.
MÜLLER, Adalberto. Em: Linhas Imaginárias: poesia, mídia, cinema. Porto Alegre: Sulina, 2012.
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Texto dedicado à turma amiga: Jane Azeredo, linda e sensível atriz; e ao querido ator Acácio de Montes, dois gênios cearenses do teatro e da cinematografia.
Renato
Grande Perdigas! Maravilhoso texto!
Carlinhos Perdigão
Oi Jessika!! Muito obrigado pelo comentário! Realmente a Literatura tem uma conexão forte com o Cinema! E são duas artes maravilhosas!! Felicidades pra vc!!
Jessika Sampaio
Uma coisa que adoro perceber também em adaptações é a possibilidades de realidades criadas a partir daquela referências, como a literatura inspira e constrói. Adorei o texto!