O BAR INFECTADO DE GIORGIO AGAMBEN Do Liberalismo Demagógico Absenteísta ao Heroísmo Suicidário

Há algum tempo, dois amigos me presentearam livros, os quais recebi com ávido interesse para saber o que estavam lendo: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, de Olavo de Carvalho, e “A sociedade que vem”, de Giorgio Agamben, levadas a lume pelas editoras Record e Autêntica. São duas obras que marcaram o que aconteceria na sequência: sucesso eleitoral de Jair Messias Bolsonaro, no Brasil, e a vitória e derrocada de Donald Trump, nos Estados Unidos.

É evidente que os artigos olavistas perderam força por firmar opiniões pessoais sem formato cientifico, epocal. Agora, vejo a difusão do pensamento de Agamben, filósofo italiano que, como Olavo, se posiciona contrário à vacinação, uso de máscara, distanciamento social e passaporte vacinal, no quadro da pandemia. Associo essa oposição com o livro menor, presenteado, e fazendo ligaduras com outros artigos divulgados pelas redes sociais, para encontrar a provável chave dessa compreensão assemelhada com as mesmas ideias que circulam no Planalto durante o governo atual. Como “fotografou” o professor Maikan Chaider Silva Scaldaferro: “A biopolitica da pandemia: Agamben e Bolsonaro entram em um bar”.
Para modelar essa percepção é preciso, antes de tudo, compreender que a biologia pode condicionar o mundo político. Ora, nascer com vida já é uma declaração legal garantida pelo Estado de Direito, que, por sinal, efetiva essa proteção, afasta riscos, porque soberanamente é fiador da vida dos cidadãos, garantindo uma série de direitos naturais e potestativos.

Entre muitas ideias, Giorgio Agamben propõe, por conta desses riscos, a figura do “homem sacro”, um ser cru, unicamente biológico, em vida nua, despido de todos os direitos, de tal modo, assim, sujeito aos mais variados tipos de controles e limitações; alguém “matável”, sem que isso represente culpa, delito ou crime, produzindo, portanto, espaços para um Estado de exceção, criando algo, segundo seus intérpretes, povoado por traficantes, criminosos, reincidentes, milicianos, autoridades corruptas e condenados à eutanásia, componentes de um clube de que ninguém sentiria saudades, sequer entraria para ser sócio.

O problema que logo subjaz nesses textos da Agamben é saber quem é o vilão diante de todo quadro de preocupação sanitária no mundo inteiro, quem produz, na atual circunstância, o “homem matável”, ou seja, quem é o “sacro” da pandemia, em nome do qual o Estado de exceção precisa ser detido, para não lacrar as liberdades face às suas medidas sanitárias. Quem é o sujeito? Não sabemos, mas esse “matável” era bem visível no holocausto: os judeus e as raças inferiores.

Sem a identificação da origem desse inimigo, as medidas de saúde pública visando controlar a disseminação da Covid-19 e outras variantes são gestões biopolíticas e estão acima de qualquer orientação ideológica, sustenta Agamben. Assim, “as distinções políticas tradicionais perderam sua clareza e intangibilidade”. O ponto crucial é exatamente este: que as decisões administrativas seriam exercitadas sob qualquer lógica, independentemente de cores partidárias, seja por governos liberais ou totalitários. Como no nazismo, por exemplo, onde a vida indigna não podia ser vivida pelos prisioneiros de guerra, então despojados de todos seus direitos e, por mais que possa parecer esdrúxulo, a morte desses detentos seria necessária para a preservação da higidez do povo germânico.

Antes de tudo, não recuso a originalidade de George Orwell (“1984”), nem de Ray Bradbury (“Fahrenheit 451”), muito menos a filosofia de Michel Foucault e, com ele, os filósofos precedentes da Escola de Frankfurt, (acrescentando Hannah Arendt), bem como toda literatura que discute a distopia e suas reflexões sobre autoritarismo, ligando o atual momento da pandemia como uma realidade então inacreditável em muitas ficções do inicio do século anterior.

Necessariamente, o problema de Giorgio Agamben é o dimensionamento da atualidade que ele precisa sincronizar com o seu pensamento. O evento sanitário, que tem preocupado a Itália e o mundo, não poderia ser o ambiente propício para a concretização de suas idéias. Com mais de cinco milhões de mortes, o terreno pandêmico não é o mais oportuno para a sua filosofia, principalmente se levarmos em conta o que pontua como “exagerada crise”, pretendendo que o desespero sanitário leva à “redução do valor das vivencias à mera sobrevivência – um passo significativo para que liberdades individuais sejam cerceadas”, uma excepcionalidade, ainda acrescentaria o filósofo, “para além de qualquer limite jamais imaginado”.

Em plataformas digitais e imprensa tradicional, o pensador discute seus escritos, lamentando que “a sociedade italiana esteja disposta a sacrificar tudo, todas as condições normais de vida, amizades, afetos, relações de trabalho, pelo perigo de ficar doente”. Daí, o quadro de pandemia, além de exagerado, seria artificial, criado pelos governos para lograr vantagens e ampliar seus domínios, uma nova situação excepcional, certamente sonhada pelo fascismo e outros regimes totalitários.

Forte nesse sentido, Agamben parece lançar uma espécie de campanha: “um país que decide renunciar o rosto de seus cidadãos com máscara se torna uma ameaça ao próprio processo de humanização”. Posteriormente, em artigo publicado no Quodlibet e reproduzindo por Settimana News, o filósofo indaga qual é o limite além do qual estamos dispostos a renunciar. Adverte sobre um possível déficit sentimental: “uma criança que, ao nascer, não vê mais o rosto da mãe corre o risco de não poder conceber sentimentos humanos”.

Depois dessa duvidosa campanha e patética advertência em defesa dos menores de tenra idade, avisa: “A soleira que separa a humanidade da barbárie foi ultrapassada”. Ou seja, com a passividade e aceitação da biopolitica, a renúncia de um rosto em troca da máscara, com uma clara idealização e concretude, a sociedade atual já se tornou bárbara há muito tempo.
Quanto ao retorno primitivo, não manifesta preocupação com as vítimas da Covid-19. Assintomático, simplesmente recorre às estatísticas. Mas o que gera desconforto entre os posicionamentos de Agamben são alguns itens pontuados por ele com absoluta certeza e propriedade. Não temo em contraria-lo. Por exemplo: a vacinação, seguida de todas as medidas sanitárias de controle e prevenção, não é uma expressão direta do biopoder (talvez em retardo), mas resposta da sociedade global, da ciência, da medicina, do direito, dos segmentos sociais, dos homens e das mulheres, em virtude da violência assassina de um vírus.

MICRÓBIOS NOVOS E ANTIGOS

Ao par dessa aparente neutralidade, a alerta sobre a natureza autoritária, discriminatória e liberticida, parece visível um ponto: seu interesse em reduzir o contágio a uma ideia, nunca “como algo que afeta seres humanos concretos”, como observou Yara Frateschi. Nesse descompasso entre real e ilusório, escreveu a professora, noutro pequeno ensaio, não precisava “empurrar milhares de corpos para baixo do tapete e romper com a verdade factual” apenas “para colocar seu pensamento em movimento”.

Por outro lado, esses micróbios novos e antigos mantidos longe da vista servem também como pretexto “para uma reflexão possível sobre uma raiz da angústia moral, civil e política em que estamos imersos — e talvez não só na Itália: que a sofística, e não é de hoje, tenha se apropriado abusivamente do nome de filosofia — e desde então, tenha tido um sucesso popular nunca conhecido nos milênios”.

Não é gracioso que, por esse velho conhecido “padrão de desonestidade intelectual”, Giorgio Agamben avalie, em dado momento, que “uma norma, ao renunciar o bem para salvar o bem, é tão falsa e contraditória como aquela que, para proteger a liberdade, impõe a renuncia da liberdade”. Daí, talvez, a plastificação dessa ideia no discurso de uma autoridade nacional, do Presidente da República, repetido pelo Ministro da Saúde: “às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade”.

Considerando que a vida é pré-requisito para que possa haver direitos, o absurdo nessa defesa é que, ao se dar conta de que colocou a liberdade em escala maior — promovendo uma inversão típica dos sofistas — o Ministro tentou consertar sua fala, restaurando a pirâmide,ao dizer que ambos direitos são indissociáveis, mas acabou nivelando-os sem qualquer primazia, o que autorizou ao leigo indagar: o que vale a liberdade inviolável de um individuo sem vida?

Morto ou vivo, se infere que a importância dimensionada em perder a liberdade deságua no fim de linha do Estado moderno. Essa prevalência há muito desapareceu porque, segundo professa Agamben, “uma sociedade que vive no estado de emergência perpétuo não pode ser mais considerada uma sociedade livre”. Isso porque, como admite noutro escrito, “vivemos numa sociedade que sacrificou essa garantia em troca dos chamados “motivos de segurança” e condena a todos a viver em estado permanente de medo”.

A partir dessa informação parcial, mais especificamente a existência de um quadro inventado que se instaurou em nome da insegurança, diz Agamben que “aceitamos docemente as medidas severas de contenção da doença”. Mais: “estamos dispostos a abrir mão de nossas rotinas e acabamos normalizando tais restrições, convertendo a exceção em imperceptível estado permanente”. Daí, como um fantasma que ganhou corpo, para o filósofo italiano, os governos assimilaram o ”perigo” para naturalizar a vida em condições permanentes de crise e de emergência.

É evidente que o debate que propõe, junto às graves questões sanitárias, é mais político-filosófico do que médico-científico, destacando, desde logo, que a descrição do fenômeno não é de uma situação de excepcionalidade, de pura exceção, mas, como já explicitei, de respostas proativas devidas às ocorrências previsíveis para a humanidade (endemias, pestes), inseridas em um quadro que nem sempre é tão evidente como se espera. A política, é bom que se esclareça, não é exatamente feita em nome da defesa da vida, ainda que os poderes tenham o dever de cuidar dos cidadãos, mas quando ela, a vida, está em jogo é obrigação do estado a prestação de socorro.

O que se quer dizer, em outras palavras, é que a política pela política não vem em primeiro lugar, mas preliminarmente a primazia são os pleitos, as demandas, os pedidos. Assim, as reivindicações motivam as políticas, orientam as pautas, e não o contrario. Por isso, as gestões são para promover a preservação, conter os índices de contaminação das doenças, diminuir os óbitos, porque são solicitadas, pretendidas, requisitadas, e só são viabilizadas, queiram ou não os conservadores, com o controle das liberdades.

LIBERDADE, LIBERDADE

Basicamente, ao desenvolver sua tese e aplicação, Agamben seleciona claramente vários pontos. Primeiro, menospreza a gravidade da situação com milhares de mortos e enfermos, culpando o alarmismo dos governos e os alardes da mídia em espalhar pânico. Adota, para tanto, o negacionismo científico, um retorno medieval, épico, segundo o qual, a “ciência se tornou a religião do nosso tempo”. E, noutro momento, com essas políticas sanitárias, instaura o Estado de exceção, segundo avisa, já em vigor em boa parte das democracias do mundo, restando, assim, estranguladas todas as liberdades.
E como evitar esse novo Estado de exceção na linha desse pensamento?

Antes do proposto “abraço entre infectados”, para surtir efeitos naturais, a proposta inicial é a inoperância dos governantes. Desacreditar o quadro pandêmico parece ser outra forma de minimizar o problema. Aliás, uma recente publicação enganosa viralizou no Instagram, comparando pessoas vacinadas com não imunizadas, insinuando que a proteção vacinal é ineficaz, não produz efeito algum e por isso os destinatários deveriam “parar e pensar”, quando nenhum dissenso sobre vacinação existe na comunidade cientifica.

A questão é que essa inoperância, uma espécie de variante decorrente de velhas “operações-tartaruga” – justificada contraditoriamente pela falta de liberdade civil -, constrange a todos, em grau amplo de alcance, atingindo populações inteiras, principalmente as mais sofridas e vulneradas pelas desigualdades sociais, as mesmas pessoas que não possuem um plano, um seguro viável, médicos à disposição (“home care”) e figuram como simples usuárias do concorrido Sistema Público de Saúde.

A verdade é que a utilização da liberdade negativa na defesa da inoperância do Estado em face da pandemia, feita por correntes como o trumpismo e o bolsonarismo – avisam Cristiano Capovila e Fábio Palácio –constitui “uma falsa liberdade”. Acertam: “Não se trata de liberdade para as pessoas, mas para o capital”. E, mesmo que considere pertinente marcar diferenças entre posturas críticas do filósofo e as de Trump e de Bolsonaro, não me parece necessário, em termos práticos, esse círculo de giz. Estes dois presidentes, a rigor, “simplesmente negam que a pandemia seja uma doença porque querem preservar a lucratividade econômica” das empresas de seus países. Malgrado a conversação entre a alternativa da bolsa e da vida, “no sentido literal, eles optaram por defender a bolsa à custa de milhões de vidas humanas”.

Dessa falta de diálogo, se extrai uma conclusão: se Agamben estava de fato preocupado com a liberdade devido ao Estado de exceção, por isso constata a passividade com as quais são recebidas as medidas oriundas da biopolítica, seu fundamento que consolida o discurso negacionista e a inoperância administrativa é puramente político-filosófico. Não transcende ao nível das ideias. Agora, Trump e Bolsonaro também manifestaram preocupação com a liberdade, adotando a mesma retórica, mas com base na economia, portanto, voltada ao mercado, mesmo cientes que eles próprios podem naufragar eleitoralmente.

Qual a diferença entre eles? Nenhuma. Quanto ao resultado, é relativo questionar o negacionismo em qualquer de seus níveis de formulação teórica, desde a sofisticação do filósofo italiano até o barbarismo desbotado da dupla norte-americana e brasileira. Agamben, Trump e Bolsonaro, desejosos da liberdade irrestrita, são os três reis que se aliaram a favor do vírus, com muitos interesses, a maioria deles acobertada pela possibilidade remota de uma “imunidade de rebanho”.

O caminho dessa compreensão, todavia, resultou no rastro de milhares de mortes e, agora, com o estabelecimento de novas epidemias, novos óbitos estão surgindo exponencialmente, em virtude da má atenção daqueles que não se vacinaram, dos retardatários que não fecharam por completo os protocolos de vacinação recomendados pela OMS, ANVISA, Ministérios e Secretarias, ou mesmo pelo aparecimento de outras cepas viróticas em face da incúria e propaganda em sentido contrário desses governos.

Em vista desse rastilho de morte, de sobreviventes e malcurados, surge uma espécie de “terceirização de responsabilidades”, a peleja entre autoridades. No bar: conhecimento cientifico questionado e política liberal procuram um culpado. Por sua vez, sem convergência, há um encaminhamento para um autoritarismo do tipo “demagógico absenteísta”, deixando as populações desassistidas, entregues aos seus próprios destinos, sem que se responsabilizem por elas, ainda que esteja em véspera da temporada de caça ao voto para as próximas eleições.

No mundo contemporâneo, vale observar, as categorias de liberdade e vontade individual não podem mais ser separadas, porém reconduzidas a um espaço comum de discussão. Da mesma forma, as categorias do poder não podem ser isoladas. De tal sorte, autoridades cientificas não devem ser confrontadas com autoridades políticas. Se a sociedade é global, todos os governos devem dialogar em juízo de ponderação em face mesmo dos interesses globais.

O grande problema é que a gestão das formas de vidas que deveriam ser preservadas, em retardo a própria indústria e comercio, só é admissível com o fundamental controle normativo. As independências e autonomias recrudescem em nome da pandemia. Fora dessa normatização surge o caos, como em muitas vezes ficamos a mercê de tragédias. Isso implicaria que o filósofo deveria discutir a organicidade do que chamo de “regras de barreira” e, com elas, examinar a “justificativa sobre a qual se fundamentam tais limitações: se é apropriada, razoável, coerente, proporcional, extensivamente a todos os interesses”, enfim, encontrar a verdadeira convergência entre os problemas sociais, que evitaria a tenebrosa aflição em que todos lutam individualmente de forma confusa, sem vislumbrar os meios para encontrar os fins.

Definitivamente, não vejo possibilidade de conceder autonomia no sentido literal de irrestrita liberdade às populações, devolvendo a elas próprias prevenções e todos os riscos que essa possibilidade impõe. Ademais, defender a liberdade horizontal (negativa) no sentido político (filosófico) pode significar, em contradição com o seu próprio pensamento, a negação da vigência do autoritarismo do teórico Estado de exceção, porque, na pandemia, essa defesa absoluta, consoante as linhas da ciência e da realidade prática, representa morte. Como explica Daniel Feix: “o filósofo cai nessa armadilha justamente porque ignora as implicações médico-científicas da questão”.

Evidente que todas essas iniciativas que envolvem vacinação, confinamento, quarentena e passaporte vacinal são bem vindas, mas com a advertência de riscos,“sem perder a desconfiança que o poder sempre deveria inspirar”, porque a força da vigilância dessas políticas e de outras iniciativas são impressionantes. “Mas já não somos vigiados por motivos bem mais fúteis por um capitalismo que há muito tempo nos impõe formas de vida?”

Na verdade, para fechar o tema, “nunca devemos renunciar à liberdade para vivermos como queremos sob protesto de que esta renúncia nos livraria do medo ou da necessidade”. É natural: “Não devemos porque simplesmente nunca é preciso”. Aliás, “do ponto de vista estritamente psíquico, o medo de tomar a vacina é o mesmo de viajar de avião”. Persiste a dúvida “em não aceitar perder o controle, confiar em outro saber”, mas navegar é preciso, viver também.

HEROÍSMO E ETERNIDADE

Ninguém discorda que a nossa sociedade é estimuladora a uma existência tóxica, que dissemina uma práxis que subentende um projeto de morte, ou seja, patrocina um “viver suicidando-se”. Pois bem: “enquanto ela é triunfalista e festeja os avanços em favor da qualidade de vida, das descobertas científicas”, dos avanços da medicina, nas contenções das doenças, pestes e pandemia, acrescento, “estimula também uma prática na qual a vida tem muito pouca importância”.

Talvez a convocação a uma resistência delirante e perversa – apelo direto e subliminar a um curioso “heroísmo suicidário”, na certeza de que o suicídio é uma celebração de ritos, costumes, tradições e liberdades no sentido de que tenhamos um direito de decidir a hora de partir – seja a face mais absurda e cruel desse negacionismo, porque, na prática, esse chamamento causa mais do que o sofrimento e dor: resulta em morte.

No Brasil, o convite para protagonizar esse nefasto heroísmo, conforme Scoldaferro, é formulado diretamente, de maneira menos polida, pois os seguidores do bolsonarismo não possuem o “dom da palavra”, como Agamben. Não faz muito, o mandatário da nação disse para um grupo de apoiadores: “é preciso enfrentar a doença como homem, pô, não como moleque”. Posteriormente, o brado: “o Brasil tem que deixar de ser um país de maricas e enfrentar a pandemia de peito aberto”. Ou seja, enfrentar a pandemia de “peito aberto” significa não se vacinar, suposto ato de coragem e grandeza. Esse apelo ao “heroísmo suicidário”, expresso pelo Presidente da República, parte da mesma premissa do filósofo italiano: “há algo mais importante que a “vida nua”, e uma sociedade que coloca a preservação da “vida biológica” acima de todas as prioridades é uma sociedade fraca, decadente”.

Aliadas a grupos minoritários, autoridades responsáveis em conter a pandemia têm oscilado em relação às estratégias de combate ao temido vírus. E, diante da possibilidade de se submeter a uma exigência de autopreservação, que a pandemia era “apenas uma gripezinha”, houve uma clara inclinação para o oposto do consenso, ao se construir narrativas conspiratórias, inimigos imaginários e ações demagógicas. Basta examinar as constantes tensões entre governo e sociedade civil, desavenças com a mídia e com outros poderes para não se duvidar do absurdo de flertar com a morte generalizada.

Apesar da vacinação contra a pandemia ser a única forma eficaz de combater o vírus e suas variantes, além de permitir o retorno das atividades corriqueiras, existem pessoas que permanecem em dúvida, outras são levadas a não acreditar nos imunizantes e até promovem propaganda contrária às medidas, geralmente compartilhando fake news, influenciando terceiros em redes sociais, ou fora delas, prejudicando o andamento do calendário e comprometendo a seriedade das campanhas sanitárias daqui e do mundo.

O fato é que a compreensão equivocada da pandemia não abrange apenas os desinformados e desprevenidos, mas é também cristalizada, sem apoio na ciência, em posições “auto referenciadas”. Custa a crer que artistas como Eric Clapton, o lendário músico, tenha uma postura tão individual e egoísta. É certo que ele pode possuir uma opinião diferente, pessoal. Mas antes de externá-la publicamente deve submetê-la a um juízo de ponderação porque a doença é letal. Manifestar-se contrário às medidas, baseada em subjetivismo, ao revelar que não fará shows em locais que exijam comprovação de vacina contra a Covid-19, não é uma declaração prudente, mas precipitada. E falo, repreendendo o guitarrista britânico, levando em conta a minha experiência: sem a vacina no meu braço, devido ao atraso proposital no calendário do governo, estive muito próximo de fazer a travessia rumo à eternidade.

Nos Estados Unidos, o ator Jim Carrey nunca foi simpático à vacinação. Leio num post: O ator é um antigo defensor do movimento antivacina, baseado na falsa teoria de que os imunizantes causam autismo. O comediante, um pouco menos chamativo do que em outros tempos, não se posicionou sobre a vacina contra a Covid-19, mas em outras ocasiões se mostrou hostil. Soltou, de uma forma hilária: “Um trilhão de dólares compram um monte de opiniões de especialistas. Será que vai comprar a minha?”

Entre anônimos, teve muitos acessos a noticia sobre um casal que recusou tomar a vacina contra a Covid-19 e faleceu após complicações da doença, deixando quatro filhos. Lawrence e Lydia Rodriguez, do Texas (EUA), estavam internados no hospital de La Marque. A mulher chegou a pedir para ser vacinada após a internação – desistindo da recusa e do provável suicídio — mas os médicos, dada a gravidade, disseram que não havia mais tempo, pois o seu pedido de reconsideração sobre a vida chegara tarde demais.

Pouco antes de concluir esse texto, a propósito, leio a noticia da morte do autor de “O mínimo que você precisa saber para não ser idiota”. Olavo de Carvalho negou a ciência, desacreditou especialistas, diminuiu a gravidade da pandemia. Não era “historinha de terror para acovardar a população”, como ano antes havia zombado. Diagnosticado com Covid-19, havia 10 dias, tendo, inclusive, suspendido seu curso de filosofia online, além de portador de outras morbidades, faleceu aos 74 anos, em um hospital do Richmond, Virginia, nos Estados Unidos, o que comprovou fidelidade ao proposto ‘heroisimo suicidário” nesse infectado salon.

Mas nada foi mais emblemático do que aconteceu com Hana Horka, uma cantora de música folk da República Checa, de 57 anos, vocalista da banda Asonance. Ela faleceu após ter contraído Covid-19 de forma propositada, com a finalidade de ter acesso a um certificado de recuperação, conforme esclareceu seu filho Jan Rek, em entrevista concedida a rádio checa.

Tal como acontece em Portugal, também a República Checa exige prova de vacinação ou de recuperação (alta hospitalar) para entrar em espaços culturais e desportivos, bem como para viajar e visitar bares e restaurantes. E para obter esse documento de recuperação, explicou o filho da cantora, sua mãe se expôs ao vírus de forma heróica e propositada, depois de o marido (seu pai) e ele próprio testarem positivo e, ainda assim, ela “decidiu continuar a viver normalmente conosco e preferiu apanhar a doença do que ser vacinada”.

Dias antes de ter morrido, Hana Horka recorreu às redes sociais para postar com todas as letras: “Sobrevivi… Foi intenso”. Festejou precipitada: “Então agora vai haver visitas aos teatros, à sauna, a um concerto e uma viagem urgente ao mar”. Mas sucumbiu ao contrair a doença para ganhar imunidade natural e anticorpos e, com isso, se livrar de qualquer exigência emanada da polícia sanitária.
Consciente da doença, mas em dúvida sobre a sua letalidade, o que é mais constrangedor desse “heroísmo suicidário” da cantora checa, segundo seu filho, foi o fato de que os líderes do movimento antivacinas convenceram a sua genitora a não se vacinar através de chats e emails, o que faz com que tenham “as mãos sujas de sangue”, ou seja, eles a levaram à extinção, criminosamente a induziram a se autocontaminar e a morrer.

Em outro momento, na imprensa escrita o jovem relatou que sua mãe foi alvo de desinformação total, mas também pessoalmente acreditava em opiniões sobre imunidade natural e anticorpos que criaria quando pegasse a doença. Mas, lamentavelmente, não foi isso que aconteceu.

Ainda na mesma entrevista concedida a rádio pública, inconformado com o luto e perda da pessoa querida, Jan Rek disse por fim: “Sei exatamente quem a influenciou. Deixa-me triste que acreditasse mais em estranhos do que na própria família”.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.

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Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.

2 comentários

  1. Clauder Arcanjo

    Um artigo esclarecedor, notavelmente escrito e nos levando à reflexão quanto aos dias “suicidários” atuais.

  2. ANTONIO Valentim

    Perco as palavras para definir o estado atual a que chegou a humanidade. Já ensaiei escrever sobre esta loucura, desenvolvendo várias teorias, mas ao final as considero tão absurdas que perco a inspiração.
    Em relação às pessoas mais simples, até compreendo que tenham se deixado levar pelos tais “fake news”, como se convencionou chamar modernamente a mentira, os boatos, as fofocas. Falando apenas pelo Brasil, mas consciente de que o fenômeno é universal, atribuo muito disso aos programas sensacionalistas de rádio, tevê, internet. Esses espaços existem para disseminar o medo, a ignorância. Dessa forma, o povo acostumou-se a acreditar no fantástico, no inusitado. O povo acredita em tudo, menos na verdade. É chato ouvir um cientistas e seus jargões técnicos, cuja linguagem é, para a maioria da população, de difícil compreensão.
    Os “jornalistas” e os “religiosos” (de denominações mais populares) costumam ir ao âmago da questão, com palavras bem inteligíveis como o inferno, o diabo, a polícia, morte, bandido bom é bandido morto. Em resumo, dominaram a comunicação, deixando a Ciência bradando no deserto. Junte-se isso tudo a governos negacionistas. A pandemia chegou ao Brasil no momento pior, como na lei de Murphy. Antes, houve a tal PEC da morte, a tal que congelou despesas públicas com educação e saúde, entre outros. Assim, o melhor caminho a seguir é negar ou, noutra ideia, ir no sentido da “imunização do rebanho”, e histórias como essas colam. Aqui na cidade onde moro ouvi de alguém que as prefeituras ganhavam dinheiro com a divulgação da morte por Covid, dando a entender que se morria por outras razões mas a culpa se punha na pandemia. Qual a lógica? Mas o “fake” já havia se instalado de tal forma que é impossível qualquer argumento lógico.
    Eu ainda continuo a procurar as palavras para definir o ponto a que chegamos.
    Paz e bem!