O Anjo Pornográfico, 110 anos

Alaíde, Doroteia, e mesmo Engraçadinha, escancaram a hipocrisia da classe média brasileira, tão católica quanto escravocrata, e tão cordial quanto cruel. (Maria Ribeiro)

Durante entrevista a uma tevê da cidade, faço sobre a obra de Nelson Rodrigues a afirmação polêmica: Nelson Rodrigues não é apenas o nosso maior dramaturgo, é ficcionista de coturno e um cronista extraordinário. Dias depois, conversando com uma amiga, ouço dela a dura contestação: “Tenho horror a ele!”

Como o debate fosse infrutífero, agarro-me ao comentário para fazer dele o objeto da coluna de hoje. E não me refiro ao dramaturgo, cuja obra é cada vez mais reconhecida como fundante do moderno teatro brasileiro, tampouco do cronista, quase tão conhecido (e reconhecido) pelos ‘bons’ e mais exigentes leitores. Refiro-me ao romancista, este, de fato, menos lido, em que pese ter deixado três ou quatro romances dignos de figurar entre os maiores da literatura brasileira.

Este ano Nelson Rodrigues faria 110 anos. Nasceu no Recife, em 1912, de onde saiu ainda criança para fixar residência com a família no Rio de Janeiro. Tinha 13 anos, apenas, quando se tornou (pasmem!) repórter policial do A Manhã, jornal fundado pelo pai, Mário Rodrigues, atividade em que se fez notar pela precoce percepção dos conflitos humanos e pela habilidade com que soube tirar disso a matéria a partir da qual produziria uma das obras mais originais e impactantes de que se tem notícia entre os escritores brasileiros.

De sua lavra, além de peças de teatro, contos e crônicas da maior qualidade literária, embora menos examinados mesmo pela boa crítica  —  e alguns deles assinados sob o pseudônimo de Myrna ou Susana Flag  —, merecem destaque os romances O Casamento, Escravas do Amor e o magnífico Asfalto Selvagem, sobre o qual me atrevo a dizer duas ou três palavras, cuidando para não incorrer em spoiler.

A matéria que serve de suporte ao folhetim (o texto foi publicado em capítulos entre 1959 e 1960), é a mesma que compõe seus contos e peças: paixão, erotismo, devoção, incesto, humor, traição, suicídio, tragédia e morte etc.

Em que reside, assim, a qualidade artística que justifica a minha admiração pelo escritor pernambucano? Talvez aí, naquilo que já à época escandalizava os leitores do jornal Última Hora e que continua causando impacto aos leitores de hoje, isto é, a arte com que explora as contradições humanas em enredos extremamente bem tecidos do ponto de vista dramático; a revelação do lado torto de cada um em complexas e refinadas tessituras narrativas feitas de sonhos, fantasias eróticas e, sobretudo, grandes frustrações sociais e psíquicas, a ‘vida como ela é’, para me valer de uma expressão conhecida do próprio Nelson Rodrigues.

Ou não se veem os noticiários, não se leem os jornais, não se constatam com realismo os fatos que grassam pelos quatro cantos do país?

Mas Nelson Rodrigues não se limita a explorar esses temas ditos ‘absurdos’, e não o faz na linha do que fizeram Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Jean Genet, Arthur Adamov e tantos outros monstros sagrados do teatro europeu, lançando mão do ininteligível e do improvável para dizer da condição humana à beira do abismo, construindo um mundo à parte.

Não, em Nelson, fale-se do teatro, do conto ou do romance, como é o caso, deparamos com a família mediana brasileira, com o funcionário público, com o político, com a mulher insatisfeita, com o cabotino, o falastrão, o oportunista, o endinheirado e o que nada tem, todos e em alguma medida tragados pela tragédia humana. Esses os elementos que dão verdade à maravilhosa mentira que soube criar, e, como um Dostoiévski que tanto amava, de que tira a sua arte a um tempo profunda e popular.

Essa a razão por que se pode afirmar que o romancista, menos conhecido, nada deixa a dever ao dramaturgo consagrado. Em Asfalto Selvagem, pois, está o escritor em sua plena maturidade criativa, transitando com a habilidade de artista enorme pelos recônditos da alma humana, expondo suas contradições e desvendando seus mistérios, compreendendo com um apurado sarcasmo o lado inconfessável da sociedade de ontem e de hoje.

Engraçadinha, a protagonista de Asfalto Selvagem (“Engraçadinha, seus amores e seus pecados” é como subintitula-se o romance), já se disse com justeza de análise, merece figurar entre as grandes personagens femininas da literatura brasileira, ombreando-se a Capitu, Dona Flor, Macabéa ou mesmo Iracema ou Aurélia Camargo, quer na primeira parte do livro, dos 12 aos 18 anos da personagem, ambientada na provinciana Vitória do Espírito Santos dos anos 1940, quer na segunda parte, já mulher plena, que tem como cenário o Rio de Janeiro, então capital do país, nos anos 1960.

Mas não são menos notáveis as demais personagens da história, a exemplo do marido Zózimo, Silene, a filha atravessada pelos mesmos dilemas e o mesmo vigor da mãe quando jovem, o ciumento Durval, seu filho mais velho, o juiz Odorico ou Letícia, nascidos da genialidade inventiva do ‘anjo pornográfico’ (assim Nelson Rodrigues se autodenominava) de que nos falou Ruy Castro em biografia incontornável.

Nelson gostava de chocar, é verdade, fez disso um mecanismo de autopromoção, nunca, no entanto, descuidando-se do fino humor e da ácida percepção do que move a vida de cada homem e de cada mulher, mesmo que, quase sempre, apenas (apenas?!) fazendo de sua arte certeira e inconfundível do ponto de vista estético, um tipo de espelho a refletir nossas realidades mais anímicas e mais dolorosas.

Lê-lo, como disse a atriz e escritora Maria Ribeiro, em apresentação à última edição de Asfalto Selvagem (Harper Collins, 2021), é encará-lo [o espelho] e ir adiante.

Por isso foi tão mal compreendido, por isso ainda se nutre e haverá de se nutrir contra ele tanto horror.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

1 comentário

  1. José Luiz

    Prezado Álder
    Parabéns pelo seu artigo desmistificando a “maldição” imputada a Nélson Rodrigues.
    Em um curso que fiz, estavam também dois psiquiatras. Questionei-os sobre a famosa frase de Nélson Rodrigues (“Nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais“) e eles me disseram que os psiquiatras pisam em ovos ao tratar esse assunto.
    Só isso evidencia a profundidade da mente humana que ele revolvia.
    José Luiz