Imbecilidades militaristas

No início do século XX, o dramaturgo e filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), autor de vasta obra literária da qual se destaca O Sentido Trágico da Vida, publicou do exílio onde se encontrava na França, fugindo do cárcere imposto pela ditadura do general Primo de Riviera, um vigoroso ensaio filosófico intitulado A Agonia do Cristianismo, no qual apresenta sua concepção intelectual do indivíduo e da vida cristã. O grande filósofo espanhol considera a agonia em seu sentido original: luta. Luta a cada momento. Luta permanente. Luta que constitui a própria razão de ser da existência.

No final do ensaio, o autor atesta: “Escrevo esta conclusão fora de minha pátria, Espanha, desgarrada pela mais vergonhosa e estúpida tirania, pela tirania da imbecilidade militarista. A agonia de minha pátria, que morre, removeu em minha alma a agonia do cristianismo. Sinto ao mesmo tempo a política elevada à religião e a religião elevada à política. As duas agonias são uma e a mesma: o cristianismo mata a civilização ocidental e esta àquele. E assim vivem, matando-se”.

No dia 29 de outubro, véspera do segundo turno eleitoral, o general tuiteiro Eduardo Villas Bôas, ameaçou mais uma vez, por meio de sua conta pessoal, desvairando que a eleição de Lula iria trazer a volta do aumento do desemprego (no governo Bolsonaro o Brasil voltou ao mapa da fome que atinge 33 milhões de brasileiros); a perda da identidade nacional (Bolsonaro presta sistematicamente continência aos símbolos dos EUA e Israel, com ataques sistemáticos à cultura nacional); a destruição do civismo (são cerca de 8 mil militares no atual governo, ou seja, o atual governo é militarista); a contaminação ideológica do ensino (o governo atual investiu ideologicamente na criação escolas militares para adolescentes visando divulgar a ideologia militarista entre jovens); a perda do valor da palavra (Bolsonaro destaca-se notoriamente pela quantidade de mentiras ditas irresponsavelmente); a substituição da verdade pelas narrativas e pelo uso da mentira (sobre lideranças bolsofascitas recai o inquérito judicial sobre fake news); o desrespeito à Constituição (as constantes ameaças às instituições democráticas e à Imprensa são produto do bolsofascismo no poder); a política externa orientada por simpatias ideológicas (o desgoverno Bolsonaro foi incapaz sequer de desenvolver durante os quatro anos qualquer política externa).

Mas os fatos que se seguiram à eleição, como todos aqueles que perpassaram os quatro anos de mandato do bolsofascismo no poder, comprovam amplamente que o elenco de atitudes irresponsavelmente imputadas pelo general em seu tuite dizem respeito inequívoco ao gado distópico do qual ele é um dos mentores.

Entre as diversas cenas inusitadas, documentadas pelas mídias sociais, dos orquestrados protestos golpistas, pela não aceitação do resultado da vontade da soberania popular expressa pelos mais de 60 milhões votos em Lula, dois deles bastariam para associá-los à análise acima proferida por Unamuno. Primeiramente, quando diante da tempestade em Brasília, que derrubou as tendas de manifestantes golpistas, uma militante orou contra a chuva: “Em nome de Jesus, você está repreendida”.  Indaga-se: o que faz alguém sentir-se determinada a “repreender” aquele fenômeno natural, de tamanha envergadura, que procede da Fonte original criadora do universo? O que significa repreender a chuva? Em segundo lugar, destaca-se a cena de dezenas de pessoas, ajoelhadas, “impondo suas mãos” em um muro de uma construção militar, orando todos em voz alta. Que processo pretendiam irromper com aquela atitude? A estes gestos e concepções viris acima pode-se dar o nome de cristianismo?

O filósofo espanhol adverte que um dos atos mais ignóbeis na história do cristianismo foi o de querer impor a fé pela força da espada (cruz-adas) e da fogueira (inquisição), buscando demonstrar sua virilidade. A máxima de tal virilidade, típica de uma cultura militarista, expressa-se na infalibilidade da autoridade hierárquica: “Em nome de Deus, eu te excomungo!”. E não foram poucas as excomunhões e condenações à fogueira ao longo da história. Virilidade deriva de “vir”, varão, o macho da espécie humana. Viril foi o furor teológico da Cruzada e da Inquisição. E do Verbo que se havia feito carne, os varões o transformaram em dogma, depois em decretos. Assim, a mensagem de Jesus de Nazaré sofreu primeiramente a modificação do ordenamento paulino, em seguida do ordenamento romano, transformando-se em deveres jurídicos a serem cumpridos, e não em vida a ser vivida e compartilhada.

De forma particular, Unamuno refere-se à doutrina da obediência passiva, atribuída ao ex-militar Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. O primeiro grau da obediência loyolista consiste na mera execução do que é ordenado. O segundo grau é desfazer-se da própria vontade para fazer a vontade do Superior, é o estágio da conformação com o mesmo querer do outro. Por fim, o terceiro passo consiste na submissão na qual todo obediente verdadeiro deve inclinar-se a sentir o que o Superior sente, crendo piamente como verdadeiro o que o Superior declara como tal. (Inácio de Loyola. Roma, 26 de março de 1553, aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal).

Mas para Unamuno, a vida civil é uma vida de liberdade e de igualdade entre os concidadãos, contrapondo-se aos dogmatismos religiosos e militares. É uma existência tipicamente cética em oposição a determinações dogmáticas. O cético estuda para ver que solução pode encontrar (e pode ser que não encontre nenhuma). O dogmático, por sua vez, busca provas para apoiar um dogma ao qual aderiu antes mesmo de encontrá-las. E aqui reside a diferença entre Ética e Religião. Há quem morra sem nunca ter transigido a Lei, mas sem ter desejado nada de Bom aos outros. Ou seja, pode-se ser cumpridor de deveres religiosos ou militares, cometendo diversos males contra os outros, seja pelas cruzadas, por meio de inquisições ou por golpes de estado perpetrados via tuites e whatsapps. Para Unamuno, a “doutrina da obediência passiva” mata no outro sua inteligência, bestifica-o. É o que se constata no Brasil, depois do golpe de 2016, por meio da dissipação de comandos midiáticos para as bestas obedientes bolsofascistas.

 

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

1 comentário

  1. Valdenir de Oliveira viana

    A religião vem de algo que foi desligado ou seja desligamento de Deus com o homem devido a queda de adão e um novo religação con Deus através de Jesus. Mas isso vem sendo distorcido por falsos Cristão com aparência de Pastores mas são cheios falsidade induzido o rebanho ao erro tai um exemplo esses gado ai se achando um Cristão de Verdade