Entre estantes, instantes, fábulas e mesas redondas – Sérgio Costa

Acredito demais que o mais prévio e puro contato com a literatura é capaz de transformar. Para sempre. E para melhor. Sim, pois somos tabula rasa até começar a moldar nossas mentes e pensamentos (e, por que não, a imaginação?) com as estórias, contos e narrativas diversas com as quais entramos em contato. Não falo somente das histórias da carochinha ou contos de fadas aos quais somos apresentados na infância. Porém, é nessa fase primária que entra um gênero que é, talvez, o mais importante para o esculpir da persona: a fábula.

 

Nem chego a apostar que todos aqueles que entraram em contato com fábulas de fantasia na infância saibam ainda contar pelo menos uma delas, ou que continuem a ter um carinho e uma memória especial por alguma delas. Ocorre que, em meu caso relatado a seguir, tive um contato mais tardio, porém essencial, com um autor e uma obra específicos que entraram certamente no meu rol de leituras favoritas e atemporais, e tudo começou com uma história que em muito se assemelhava a uma fábula. Isso começou lá pelos idos de 2005-2007 no meu primeiro emprego de carteira assinada: livreiro. E que função e empresa! Não podiam ser melhores para começar minha carreira na comunicação, e também para minha formação como ser humano.

 

Para minha felicidade posterior e aprendizado para o resto da vida, trabalhei por quase 2 anos em uma das unidades aqui em Fortaleza de uma extinta rede nacional de livrarias. A loja era agradabilíssima – tinha até um restaurante muito chique no piso superior, de onde cheguei a ver subindo pelas escadas pra jantar atores famosos como Patrícia Pillar, Mariana Ximenes e o simpático Carlos Vereza, que inclusive me pediu pra consultar um livro em específico. Mas a graça mesmo (além de ver essa gente linda, elegante e sincera) estava em descobrir e aprender a literatura no cotidiano. Devido ao pouco movimento em alguns dias, eu podia entrar em contato mais profundo com as páginas dos diversos títulos que ajudava a organizar nas prateleiras e mesas, bem como para debater com meus colegas sobre alguns tantos outros, trocando dicas de leitura e indicações valiosas.

 

Na estrutura da loja, as mesas redondas – que ficavam sempre próximas às portas de entrada, expunham os livros da famosa lista dos Mais Vendidos da Veja. Geralmente eram aquelas obras cujo trabalho de marketing em cima é muito pesado, como Paulo Coelho (nada contra você, amigo Paulo, mas é só pra te usar como exemplo…ou até ver se algum dia faturo um jabázinho mole por essa indicação aqui no texto!) e tantos outros. Assim, as mesas arredondadas e mais centrais da loja estavam sempre dedicadas às obras amplamente divulgadas pelas grandes editoras na mídia nacional, sendo fatalmente as primeiras onde os clientes esbarravam chegando ao local.

 

Mas eu tinha um carinho muito mais especial mesmo era pelas mesas quadradas, minhas favoritas. Principalmente porque de “quadradas” não tinham nada, se é que você me entende. Elas ficavam distribuidas pelo restante da loja, e até tinham uma quantidade maior de livros empilhados do que as redondas. Não tinham atenção total, mas sempre traziam algo de bom e que valia a pena “garimpar”. Geralmente eram compostas por uma miscelânia de obras e estilos, e apesar de tentarmos organizar por gênero literário (mesa só com romances, outra auto-ajuda, outra infantil), muitas vezes elas ficavam feias e bagunçadas porque o tamanho da loja não comportava tantos livros que chegavam. E como pregam os manuais de comunicação visual no ponto de venda, o olhar do cliente se debruça mais rapidamente sobre o que é belo, organizado, mais iluminado e bem posicionado.

 

Mesmo assim eu gostava delas! Era sobre as mesas quadradas que eu me debruçava quando não tinha muita gente pra atender ou muito o que fazer nas minhas 8 horas de expediente em pé. Às vezes, aquela grande obra que pode mudar sua vida está bem ali mesmo, fora do alcance da vista, numa mesa feia ou empoeirada, ou numa estante escondida. Aquele livro que pode mudar seu jeito de apreciar o mundo literário pode (e muitas vezes, deve) estar fora das indicações da grande mídia, mas à distância de um bom papo e troca de figurinhas com alguém. Essa é a graça da tal boa e velha indicação boca a boca. E tal como a respiração que leva o mesmo apelido, esse tipo de dica pode realmente puxar alguém do sufuco que é estar sem nada de muito bom pra ler.

 

No meu caso, aprendi isso descobrindo – através da indicação de um colega da loja, uma obra fantástica, especial, linda e atemporal daquele que veio a ser meu escritor favorito de toda a vida. O livro se chama “De Repente, Nas Profundezas do Bosque” do recentemente falecido autor israelense Amós Oz. A história, como definida à época pelo próprio autor, pode ser entendida como “uma fábula para todas as idades”. Conta-se que, em uma pequena e remota aldeia, não existia praticamente mais nenhum tipo de animal. Nem um simples cachorro, gato, vaca, ou peixes, sequer insetos. Na escola, a professorinha das crianças tentava, no cotidiano, explicar a elas e descrever como eram esses animais, fazendo desenhos ou imitando o som que cada um fazia. Mas as crianças só debochavam dela, pois seus próprios pais e também os aldeões as convenciam de que os animais não passavam de uma lenda e que haviam sumido há muito, muito tempo atrás. A história contada era que, uma noite, um demônio chamado Nehi, que vivia no assombrado bosque ao lado, havia passado pela aldeia levando para sempre todos os animais.

 

Mas duas crianças, Maia e Mati, duvidavam de tudo isso. Um dia, decidiram desafiar a tudo e a todos (inclusive seus próprios medos) e adentraram ao bosque para descobrir a verdade. É aí que começa a aventura e as mensagens mais lindas que o autor quer passar. Numa narrativa fantasiosa, porém muito lúcida, Amós nos guia pelas profundezas do bosque cuja ambientação é uma metáfora de nossos próprios preconceitos e medos. O bosque só é escuro porque nos colocamos a proibição de jamais jogar a luz de nossa visão e conhecimento sobre ele, por medo ou desinteresse. Lá habitam os demônios que tememos e não conhecemos para poder enfrentar (ou com eles até confraternizar), e também os medos, angústias e dúvidas que pairam sob nossas mentes.

 

Uma das mais belas passagens do livro é sem dúvida um retrato demasiado atual de nosso mundo, tão vasto, belo, mas tão desconexo, incompreensível e impaciente consigo mesmo. Num dos momentos mais emocionantes, quando as crianças cruzam um riacho no meio do bosque e avistam, pela primeira vez em suas vidas, um peixe, Maia reflete com a pureza no olhar que só uma criança pode ter:

 

“[…] na realidade todos nós estamos bem próximos uns dos outros, apesar de todas as muitas diferenças entre nós; pois quase todos nós temos olhos para ver formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. […] Isso e mais: todos nós sem exceção nos assustamos às vezes e até mesmo ficamos apavorados, e às vezes todos ficamos cansados, ou com fome, e cada um de nós gosta de certas coisas e detesta outras, que nos inspiram temor ou aversão. Além disso, todos nós sem exceção somos sensíveis ao extremo. E todos nós, pessoas, répteis, insetos e peixes, todos nós dormimos e acordamos e de novo dormimos e acordamos, todos nós nos empenhamos muito para que fique tudo bem para nós […], todos nós sem exceção tentamos a maior parte do tempo nos preservar e nos guardar de tudo o que corta, morde e fura. […] e assim no fundo é possível dizer que todos nós sem exceção estamos no mesmo barco: […] não apenas todas as pessoas, mas todos os seres vivos. […] Logo, […], quem debocha dos outros passageiros na realidade é um bobo que está no mesmo barco. E não existe aqui nenhum outro barco.”[1]

 

 

Assim, o livro vai discorrendo lindamente, em passagens memoráveis como esta acima, sobre intolerância, respeito e esperança, reforçando o quanto é importante ter independência no espírito e entrar em tratamento intenso contra a ignorância e o obscurantismo com a devida urgência. Também evoca com maestria e delicadeza o cuidado que temos que ter com o meio ambiente, tema sempre tão incansavelmente retrucado por quem não acredita que nosso lar Terra é tão único, belo e especial, mas que também sangra e um dia pode morrer. E adivinha? Todos estamos neste mesmo barco.

 

A literatura de Amós Oz me marcou profundamente. Passei a colecionar diversos títulos dele – ainda tenho com muito carinho todos em minha estante, e poderia indicar muitas outras obras que trazem a doçura e a lucidez de sua escrita e ainda um forte apelo político e social à paz. O autor também era conhecido por ser um incansável ativista, tendo inclusive fundado um movimento chamado Paz Agora, que tentava mediar os conflitos entre Israel (sua terra natal) e a Palestina. Diversas outras obras suas também carregavam este forte traço, como “Pantera no Porão” (que inclusive virou um belo filme, estrelando o famoso ator Alfred Molina), “De amor e trevas” – sua autobiografia, “Cenas da Vida na Aldeia”, “Sumchi: Uma fábula de amor e aventura” e tantos outros.

 

Como nas histórias de Oz, a jornada com a literatura que mais me marcou começou assim: no bosque das seções escuras daquela livraria, sem medo ou preconceitos, abrindo meu coração e mente a uma leitura diferente, nem sempre vista, mas igualmente rica ou até melhor que as mais expostas aos holofotes. Essas e outras leituras me moldaram como ser humano, em valores, imaginação e tranquilidade na busca pelo saber, e isso nunca foi tão importante quanto hoje, quanto agora, e será ainda mais importante para o futuro. Descobri meu amor pelas letras explorando justamente o que a maioria das pessoas não gostava ou não dava atenção. Sempre assim: navegando sem medo e sem pressa entre estantes, instantes, fábulas e mesas redondas (e algumas quadradas, geralmente bem melhores).

 

[1]     *OZ, Amós. De repente, nas profundezas do bosque. Tradução Tova Sender. São Paulo, Cia. Das Letras, 2007, pg. 45-57.

Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.

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Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.

1 comentário

  1. Renato

    Beleza, Sérgio! Também acredito no poder da literatura nesses tempos tão carentes de tolerância e luz! Abraços!