Em 1968 eu havia passado uma temporada em São Paulo, juntamente com minha família, em virtude do trabalho de meu pai à frente da filial do escritório de projetos do qual era sócio. Retornamos para Recife no final daquele ano, para nossa casa à Rua Rita de Sousa, 224, no bairro de Casa-Forte. Foi muito bom poder voltar a conviver com minha avó Conceição, com os primos e primas, com os amigos da vizinhança, jogar bola na rua, brincar de queimado, barra bandeira, esconde-esconde, bola de gude. Morávamos na casa que pertencera a Paulo Freire adquirida pelos meus pais ao magnífico mestre.
Mas nesse retorno, algo de peculiar eu observara. Meu grande amigo de infância, Ricardo Oliveira Lacerda de Melo (Rica), “tava diferente”. Algo a mais que jogar bola o interessava. Em 1970, numa de nossas frequentes conversas pueris sobre nossos ícones musicais nacionais, enquanto eu, contando nove anos de idade, apresentava uma preferência pelas guitarras em ascensão, ele, aos doze, dizia gostar de Chico Buarque de Hollanda. E cantou-nos uma de suas canções: “Pedro Pedreiro”.
Para mim, foi um choque. Fiquei perturbado com tudo aquilo.
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem…
… Pedro pedreiro tá esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte…
… Pedro não sabe, mas talvez no fundo
Espere alguma coisa mais linda que o mundo
Maior que o mar
Mas pra que sonhar?
No ano seguinte, em 1971, aos dez anos, perdi meu pai para um acidente automobilístico que lhe foi fatal no florir de sua existência, aos trinta e quatro anos de idade. E me vi cravado não em um sonho, mas num macerado pesadelo, com extrema dificuldade de encontrar um norte para seguir.
Em 1976, estava em Porto Alegre, participando dos Jogos Estudantis Brasileiros (JEB’s) pela modalidade basquetebol masculino. No alojamento, durante o tempo livre, a ocupação de alguns de nós, além de namorar, era escutar em primeiríssima mão o LP Meus Caros Amigos, de Chico. Um novo encontro me marca, agora na adolescência. A conjugação de “À Flor da Pele”, com o estonteante livro de Jorge Amado e a figura enigmática de Sônia Braga.
O que será que será?
Que dá dentro da gente e não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
E nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
Somando-se a esse furacão de descobertas das paixões, agrega-se o outro lado do vulcão com “A Flor da Terra”, quando em 1977, com 16 anos, iniciei uma trajetória de participação em festivais musicais no Recife, defendendo a canção “Cida” (à época censurada pela Polícia Federal), de minha autoria em parceria com Léo Damasceno e Laercio Gonçalves Júnior.
Meu camarada, eu recebi a sua fita
E sua filha continua cada vez bem mais bonita
Eu sei que a vida por aí não se cansa de rodar
Roda-roda, roda-viva e para no mesmo esperar…
Por fim, de tantos encantos e encontros, registro dois outros. Primeiramente com “Calabar”. Sobre o questionamento de nossas tomadas de posição política diante dos contextos históricos de dominação, descrevendo a opção de Calabar em tomar o partido dos holandeses contra o poder colonial português. Por que ser dominado por Portugal é melhor do que pela Holanda? Interessaria a quem tal submissão?
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
E não poderia deixar de registrar “Morte e Vida Severina”, com seu “Funeral de um lavrador”, que encenamos, em português, juntamente com o professor Maurismar Feitosa Chaves e amigos, em Roma, Itália, num congresso internacional cuja pauta centrava-se nos desafios da construção de uma cultura global de paz e justiça social, no início deste século. Foi emocionante ver o quanto de profundamente universal é o sofrimento humano cantado e escrito por João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque de Hollanda. A audiência ficou impactada.
Obrigado a Chico e a todos, por esses encontros. Como diria Vinícius de Morais, a vida é a arte do encontro.
Paulo Rech
Belíssimo! “Ver” tua história é ver a nossa