Diário de um escritor de província. Prólogo (I)

 

Por que certos pretendentes acabam desprezados e certos amantes acabam abandonados.

O maior desafio de um escritor é a construção do seu projeto. Secundariamente, o desafio do escritor de hoje é construir o seu projeto sem o aval do mercado. Em terceiro lugar – na verdade causa do segundo –, o desafio do escritor é construir sua coerência (o mesmo que dizer seu projeto) diante da história.

Harold Bloom (A angústia da influência) diz que épocas historicamente fortes redundam em uma mais fraca literatura, e que épocas historicamente mais fracas produzem uma literatura mais forte. O crítico não deixa claro o que seja propriamente a força da história. Mas os quarenta anos de uma vida dedicada à literatura me fizeram perceber que, apesar das terríveis calmarias (sempre aparentes) da história, essa força sempre esmaga nossos ossos até o chão.

A dificuldade é encontrar em que ponto efetivamente se encontra a história em épocas em que se tem a impressão de que nada acontece (a falsa calmaria). A História, com maiúscula, é um imenso animal invisível e eventualmente letárgico que nós, meros mortais, achamos que está além das nossas forças e do alcance de nossas mãos. Em países messiânicos como o Brasil, cuja tragédia reside em parte na eterna e sempre renovada espera por um salvador, os meros mortais de que falo e dentre os quais me incluo parecem ser seduzidos subliminarmente pela ideia tentadora de que esse fardo terrível chamado história seja tirado dos seus ombros. O máximo que podemos fazer é escolher o Atlas que no nosso lugar vai levar o mundo nas costas (apoiando os pés nunca nos dizem exatamente sobre o quê), ou seja, periodicamente nos chamam para votar para substituir ou manter nos seus lugares os santos, os gênios e os heróis que pretendem representar diante do tribunal do mundo a nossa pobre raça brasileira.

Aí o sujeito tem a péssima ideia de escrever livros. A ideia já é ruim pelos presságios que a rodeiam, dos monstros burocráticos que terá de enfrentar o aspirante para concretizar materialmente esse fetiche de papel e tinta chamado livro. Se conseguir escrever ao menos um dos livros que sonha (há escritores que não conseguem trabalhar de tão sufocados pela própria genialidade), o mais provável é que não consiga publicar. Se conseguir publicar é difícil que venda e seja lido. Se vender e for lido é quase certo que não será compreendido como deseja. Se for compreendido é aí que começam os seus problemas: a comunidade humana não suportará o peso de suas palavras e baterá na sua pobre casa com tochas na mão durante a madrugada, pois não será aceito enquanto estiver vivo, e esse é o auge do sucesso a que pode aspirar. Terão que esperar pela sua morte para dar uma interpretação conveniente de sua obra e sepultar seus nome no esquecimento coletivo das placas de rua. Se muito.

Pode ocorrer diferente? Pode. O escritor pode escrever, ser publicado, vendido, comprado, lido, compreendido, aceito, aplaudido e celebrado em vida. Desde que o que ele diga esteja ao alcance de todos e não ofenda ninguém. Para meu azar, não sigo os conselhos dessa casta de escritor, e minha pobreza material é testemunha disso, logo, também não é a esse tipo de escritor que eu posso dar o mínimo conselho. Embora eu não esteja propriamente dando conselhos a ninguém. Não poderia vendê-los por falta de talento comercial.

Terei que voltar a esse ponto antes que digam ou mesmo que não digam que sou um romântico, um ressentido ou, pior, um ressentido romântico. Do que eu queria falar era de como a História com H maiúsculo se tornou uma coisa inacessível para o ser humano que sobrevive sua mera-vida. Coisa que também ocorre com os escritores (pois não sei se vocês notaram, meninos e meninas, mas os escritores, em geral, e por mais que queiram se afastar disso, ainda são membros da pobre humana raça).

Mas como? Uma pequena partícula de sujeira bioquímica, um vírus, uma micronanosfera de gordura coroada de proteína, não nos mergulhou a todos numa grande experiência coletiva que tornou a vida de cada um o reflexo do que dizem os noticiários, antes tão distantes e abstratos, ou seja, não vivemos agora o dia a dia de uma crônica histórica e de um modo tão cansativo que mais uma vez a própria História se tornou o pesadelo de que desejamos acordar, como desejou o sr. Stephen Dedalus?

A crise sanitária revelou uma série de fraturas sociais que há muito danificam nossos pobres ossos; revelou o quanto estamos separados uns dos outros e quase a impossibilidade de a primeira pessoa do plural ainda fazer sentido (paciência); mais uma vez se revelou que as esperanças de Francis Fukuyama se sustentavam num otimismo mais que exagerado numa vitória definitiva do liberalismo e do gênio humano (a partir de um determinado momento, nenhuma revolução faria mais sentido, nenhuma grande mudança estrutural ocorreria, e bastaria gerir os eventos do que até então se conhecia como história: a teoria do fim da história tem muito disso, atira no que vê e acerta no que não quer ver). Hans Beting, falando sobre história da arte, tira conclusões mais proveitosas e mesmo pragmáticas e realistas: ele diz que a história da arte não pode mais ser pensada em termos de grandes movimentos, imensas continuidades e radicais rupturas, da mesma forma como não pode ser vista como uma marcha rumo a algum tipo de progresso, e mesmo o conceito mais tranquilizador  de cronologia está ameaçado de uma forma tal, condenado mesmo, que o seu salvamento é a pior ideia que se pode ter.

A impressão, é claro, é a de que se a História fosse uma pessoa ela estaria rindo da gente. Ou chorando? As duas opções são ironizar ou lamentar a falta de comunicação. A pandemia não restabeleceu os contatos perdidos? Ainda não. A História não é uma pessoa: não vai rir nem vai chorar; não vai dizer o que tem a dizer numa língua que poderíamos não entender, mas poderíamos ao menos buscar saber qual era.

A experiência individual não só não dá conta da totalidade como se tornou a ilusão de que o indivíduo sabe alguma coisa sobre si. Um Homero podia ter uma visão ampla de todos os ofícios de trabalho, modos de vida e hábitos de cada fragmento que compunha o todo. Balzac também, e a complexidade social que se desenhava com novas estratificações sociais só o ajudava. Países de menor mobilidade e estratificação social viviam o drama de que o progresso era um horizonte distante, mas isso mesmo fez nascer um Machado e um Dostoiévski.

A ultraespecialização dos ofícios, a criação sazonal de novos ofícios e o desaparecimento de ofícios que envelheceram sem sequer criar uma memória e uma tradição (o ser humano também é uma tecnologia ameaçada de obsolescência), e a cada vez mais profunda e radical separação das classes e dos grupos sociais torna mais difícil que se encontre esse nervo da história.

Em termos de linguagem parece mesmo que ou queremos sempre que a História se revele num linguajar antigo ou lamentamos que a linguagem que ela fala agora não manteve a pureza e a clareza que a gramática prescreve (o maior erro e pecado do amor é não ser como imagina e deseja o amante). Efetivamente, já não há como tocar num determinado nervo e fazer com que todo o corpo tenha espasmos. Por que somos maus anatomistas? É provável que o que se exija agora sejam novos especialistas.

O mais engraçado é que os charlatões que preveem não o futuro que vai ocorrer – e que achávamos entediante ainda adivinhar porque parecia na cara, e de repente uma doença geral mostrou que não somos tão clarividentes nem em relação ao presente – mas o que um termo médio majoritário deseja que ocorra sempre conseguem se adaptar. O charlatão é muita vez o escritor que escreve, publica, vende, é lido, compreendido e celebrado (vão dizer que minha crítica se baseia na inveja). Eu disse que não estudaria na sua cartilha. Mas o que será que ela traz como lição.

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