Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já gravado, por aqueles dias, pela cantora Vanusa. Como o disco já estivesse sendo prensado, Erasmo lamenta ser irreversível sua difusão com o texto original.
Curioso e invariavelmente atento às sutilezas de estilo e feeling poético, Braz pede-me uma opinião sobre qual das versões é poeticamente melhor.
Eis a questão.
A primeira versão, gravada por Erasmo Carlos, mais bem trabalhada do ponto de vista poético, no meu entender, é esta: “E as borboletas do que fui/pousam demais/por entre as flores do asfalto/em que tu vais”.
A segunda versão, gravada por Vanusa, e que faria maior sucesso, é mais simples, mais direta em seu lirismo ligeiramente derramado: “Como é perversa a juventude/do meu coração/que só entende o que cruel/o que é paixão”.
Minha, é mera subjetivação a escolha, pois que em matéria artística nem sempre o rigor acadêmico deve ser tomado como parâmetro ou prova de acerto. A poesia traz em si seus segredos, suas idiossincrasias, também eles sujeitos ao entendimento íntimo, à cumplicidade subjetiva a que se sujeita a emoção estética ou mesmo as limitações do crítico.
As doutrinas em torno do fazer poético constituem um campo de estudo extremamente vasto, e são historicamente associadas à filosofia grega, de que Platão e Aristóteles são as bases incontornáveis. Da mimese ou imitação, como de início se supôs ser o seu caráter, a poesia alcançou outras dimensões em termos axiológicos ou valorativos, passando do dogmático aristotélico para a abstração ética de Horácio, que em sua “Arte Poética” exalta o papel do poeta: deleitar e comover na medida exata e na mesma proporção.
Donald A. Stauffer, em livro clássico sobre a natureza da poesia (The Nature of Poetry, 1962), adverte que “a natureza da poesia é fluida, de forma que as suas leis, à semelhança das leis da Natureza, podem ser deduzidas como princípios genéricos no interior dos quais os poetas se movem facilmente, de acordo com a sua própria índole, e sem nenhum empecilho ou coerção”.
Sem entrar no mérito das razões por que Belchior terá decidido mudar os versos finais de uma de suas obras-primas, igualmente bem interpretada por Erasmo Carlos e Vanusa, e desculpando-me por incorrer em inevitável olhar para o campo teórico, vasto e complexo como a própria poesia, evidencio que também ao leitor é dado o direito de escolher de conformidade com sua íntima motivação, seu estado de espírito, suas circunstâncias existenciais, seu repertório, sua sensibilidade estética.
De minha parte, como encontro-me no instante em que escrevo esta crônica semanal, sinto-me mais tocado, mais envolvido e mais cúmplice da poesia em sua primeira versão, cuja força sensorial, estando a meio caminho entre a razão e a emoção, como a transitar de Kant a Hegel, faz escolher a bela imagem das “borboletas do que fui pousam demais por entre as flores do asfalto em que tu vais”.
Não é demais lembrar que a relatividade é atributo inerente à poesia, mesmo quando sobre ela nos debruçamos armados com os instrumentos da ciência, na linha do que professa o respeitado teórico Johannes Pfeiffer, de quem tomo, à guisa de conclusão, a irrecusável afirmação: “A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento”.
Que falta Belchior nos faz.
Clauder Arcanjo
Também, amigo Alder, me alumbro mais com os versos da versão que chegou ao disco do Erasmo. Que falta Belchior nos faz!