CLÁUSULAS DE BAREIRA AO ESQUECIMENTO HISTÓRICO.

No mês que passou, a imprensa nacional pautou dois assuntos interessantes que geraram polêmicas. O primeiro foi a recusa do compositor Chico Buarque de Holanda em cantar uma de suas antigas composições, “Com açúcar e com afeto”, porque estaria historicamente desatualizada. Segundo o artista, o samba-canção foi uma demanda da cantora Nara Leão, que solicitara uma música do tipo “Amélia” e, assim, a compôs e gostou de fazer o trabalho quando “a gente não tinha esse problema”, mas as mulheres “têm razão, vou sempre dar razão às feministas”, reavaliou em matérias jornalísticas e posts divulgados pelas redes sociais.

O segundo destaque que gerou discussões junto aos veículos impressos e mídias digitais foi a Semana de Arte Moderna de 1922, questionada pelo jornalista Ruy Castro. Inicialmente, pelo tamanho do evento, muito menor do que o divulgado; depois, argumentou sobre sua importância nacional, quando, segundo o escritor, ninguém fora de São Paulo ouviu falar na notável Semana que, entre outras bandeiras, seria a explosão de ideias inovadoras e, mesmo em São Paulo, garantiu ele, “poucos tomaram conhecimento” [1].

Esses dois eventos — a recusa de Chico Buarque, uma espécie de autocensura em retardo, e a avaliação negativa feita pelo escritor Ruy Castro de um tema que se tornou uma espécie de consenso – têm uma ligação muito forte com a disciplina da história, do retorno ao passado, da alteração de fatos que foram vinculados a determinadas épocas, passando por uma curiosa reinterpretação para restabelecer verdades, ou respostas historicamente adequadas.

A essas possibilidades surge uma avalanche de perguntas. Então: é possível voltar ao passado e, nesse giro contrário aos ponteiros do relógio, corrigi-lo? É justo que se faça uma reavaliação de sua própria obra e conclua que a peça particular “já não pega muito bem” do ponto de vista politico? É admissível redimensionar um fato que data de muitas décadas? A história se repete? O que fazer contra a repetição?

Para começo da abordagem, devemos manter o pensamento na altura de que o passado tem um ponto relativamente fixo. Falo relativamente porque não existe, em ciência, obra definitivamente acabada, fechada em fronteiras. Ainda que os novos pensadores e críticos aos marxistas passem a avaliar que não existe passado imóvel e estático, no sentido que ele estaria à espera de uma crítica, é preciso que se combata o esquecimento, a negação, a falsa consciência, e promova gestões compromissárias entre gerações [2].

Confiante nessa premissa, Karl Marx, ao observar que os fatos e personagens de grande importância na história do mundo podem voltar duas vezes, segundo Hegel[3], acrescenta dois módulos nesse retorno: pela primeira vez como tragédia, na segunda como farsa[4]. E não é preciso ir muito longe para averiguar a prova dessa proposição filosófica. Canudos e Contestado: dois massacres – o primeiro ocorrido em 1897 e o segundo em 1914 – são uma autêntica repetição de tragédia. Atualmente, o Coronavírus-19 (2019) tem profundas semelhanças com a Gripe Espanhola (1914), portanto, outra trágica repetição.

A politica não é menos burlesca e pontuada de tragédias. Basta observar que as ideias de Adolf Hitler e Benedito Mussolini continuam no radar de muitos representantes políticos. O retorno pretendido pode estar no renascimento dos partidos conservadores de direita em algumas partes do mundo. O que é muito grave: por algum motivo, esses personagens não se aposentaram definitivamente, nem foram banidos do “mapa da decência histórica”.

No geral, mutatis mutandi, o que temos registrado é que, quando menos se espera, vêm à tona verdadeiros vexames, repetição de estilos já superados, episódios anacrônicos, como pessadelos resuscitados, os quais, na maioria das vezes, causa angústia, sofrimento e morte.

PANDEMIA: PURA TRAGÉDIA E FARSA

Evidente que essa repetição não é uma volta literal, um simples flashback frio e congelado, mas retorno semelhante ao que aconteceu, um dia, porque vinculado a uma variedade de condicionamentos de época. No momento atual, por exemplo, o próprio capitalismo neoliberal é do tipo que acumula muitas crises, aliás, geradoras, como sempre, de inúmeras desigualdades sociais, mas é uma continuidade de repetição bem diferente, enquanto Marx estudou um capitalismo analógico do tipo que envolve o crescimento do capital correspondendo obrigatoriamente ao crescimento físico dos galpões das fábricas. O capital globalizado e virtual vai muito mais além do “capitalismo de cassino”, puramente de especulação.

O fato é que, cortando essa narrativa para não adentrar no mérito econômico, “não importa o que faz” esse capitalismo, mas ele sempre continua se beneficiando, de tal modo, às avessas, “funciona como socialismo dos ricos, quando a economia vai bem, os ricos ganham, quando vai mal, eles ganham também” [5].

É nessa perspectiva atual, de um capitalismo repetitivo, que se repete a pandemia com a volta de semelhantes abusos. Primeiro, a exclusão do fato, a dissimulação, a mentira, as atuais fake news: “não é nada sério, só é um resfriadinho”. Depois, a terceirização da responsabilidade: “a culpa é daquele povo lá”. Mais preocupante é o negacionismo, quando se adotam posturas irreais, tipo “relaxa que tem um remédio caseiro que cura tudo”; e sobre o isolamento: “não precisa, isso é uma invenção da politica”. Ou, ainda, a ideia elitizada de que governantes – na antiguidade, pessoas etnicamente superiores, sobretudo príncipes, reis e rainhas — estariam imunes às doenças e, por isso, não deviam sequer se vacinar, confundindo populações menos esclarecidas e influenciando outras em estados liminares de indecisão.

Essas frases, que se misturam a superstições e estigmas, certamente foram ouvidas, com muitas variações, é certo, “na antiguidade, na idade média, entre 1347 e 1351, durante o surto de peste negra”, ou, no século anterior ao atual, “cem anos atrás, com a eclosão da gripe espanhola”, garantem as professoras Beatriz Calais e Maria Laura Saraiva[6].

Em todos os casos, a incerteza e o dilema se repetem: parar tudo, ou diminuir a circulação das riquezas para salvar vidas. Mas se repetem também as mesmas decisões: ora, nem pensar nessa alternativa porque as exigências da produção material prevalecem como sagradas, reinando preferencialmente sobre quaisquer considerações de ordem social, estética, religiosa e moral [7].

Em tempo de um “neoliberalismo populista”, portanto, a ordem é a livre circulação, remetendo para o Estado o ônus do tratamento dessas doenças. A demissão de Carlos Seidl, em plena gripe espanhola, então diretor de Saúde Pública, tem certas semelhanças com a exoneração de diversos Ministros da Saúde durante a pandemia no governo atual.

É possível fazer outras conexões, por sinal, bem diretas: o surgimento de “medicamentos” milagrosos, “vinagre de frutas” e “limão tomado como refresco” (seria a atual cloroquina); os conselhos para evitar a doença (“lavar as mãos e o rosto com bastante sabão e sempre que possível”), “evitar aglomerações”, “não fazer visitas”, “evitar bebidas alcóolicas”, como divulgava incessantemente pela Diretoria Geral de Saúde Pública, são praticamente os mesmos. E a informação muito repetida de que “o doente era um foco ambulante da moléstia”. Tudo isso demostra que há uma repetição muito clara, como avisa a professora Marialva Barbosa[8], de tragédia e farsa.

Aliás, no final da apresentação do famoso livro de Karl Marx – “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” – para uma edição de 1965, observa a pesquisadora referida, Herbert Marcuse revela que, quando Marx escreveu a obra, não conhecia o horror dos períodos fascista e pós-fascista. No final, anotou o prefaciador: “Os fatos e personagens da história mundial que ocorrem, por assim dizer, duas vezes, na segunda não ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.

DILATAÇÃO DO METAL HISTÓRICO

Mesmo que haja uma repetição de fatos e eventos em determinados contextos sociais, não é menos exato que a história deve ser avaliada (aliás, é exatamente isso que fazem os historiadores), hoje, em tempo real. Agora, ao fixar um ponto extraordinário, positivo e aceito socialmente, com uma tentativa de expandir essa memória, de se repetir, não como tragédia, mas como exemplo de cultura e arte, há um risco dessa expansão ser compreendida, em parte, como farsa, se ela não corresponder à posição de verdade.
Explicando melhor: existe realmente a possibilidade de repetição da história como tragédia e farsa, mas também a não repetição, apenas a farsa. Normalmente, isso acontece quando os relatos são atribuídos à história oficial, tendenciosa, seletiva e tradicional.
Segundo os historiadores, a Semana de Arte Moderna, realizada em dias alternados, entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, teria sido a explosão de ideias inovadoras que tinham como manifesto a abolição por completo do conservadorismo, a perfeição estética tão apreciada no século anterior, no momento em que os artistas brasileiros buscavam uma identidade própria e a liberdade de expressão. Com este propósito, experimentavam diferentes caminhos, sem definirem nenhum padrão, o que foi bem aceito por todos os segmentos sociais progressistas.

Também os historiadores são unânimes em afirmar que, embora tenha sido alvo de muitas críticas, “a Semana de Arte Moderna só foi adquirir sua real importância ao inserir suas ideias ao longo do tempo”. Esse é o ponto importante. “O movimento modernista continuou a expandir-se por divulgações através da Revista Antropofágica e da Revista Klaxon, e igualmente pelos seguintes movimentos: Movimento Pau-Brasil, Grupo da Anta, Verde-Amarelismo e pelo Movimento Antropofágico”. Mas somente com o correr dos anos, “o movimento se tornou o símbolo mais vistoso”, porém, “não inaugurou o Modernismo brasileiro” [9].

O pesquisador Jotabê Medeiros procurou saber como foi a cobertura jornalística nos dias da eclosão da Semana de Arte Moderna de 1922. Corroborando com a afirmação de Ruy Castro, escreveu: “o único jornal no qual encontrei o registro do chamado “1º festival”, em 13 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, foi O Estado de S. Paulo. Concluiu: “Embora as Folhas, que originaram a Folha de S. Paulo, em 1921, já existissem, não encontrei nada nelas”. E “fuçando nos arquivos todos”, a impressão que ele teve foi “que o debate público” junto aos jornais “sobre o modernismo foi esquentando progressivamente”, isso “quando os seus artífices parecem ter sistematizado e espraiado uma produção” [10].

Por outras palavras, a Semana de 22 só galgou de fato importância e reconhecimento depois de algum tempo, a partir de 1928 e 1929, como define Medeiros. Daí o escritor Ruy Castro não mexeu no passado, nem retocou nenhum fato. Pelo contrário, reconduziu o movimento positivo de ruptura à sua verdadeira dimensão original, sem a expansão que se protraiu ao longo do tempo.

De fato, outros movimentos artísticos aconteceram em cidades brasileiras que não tinham — e não têm — a mesma importância de São Paulo. Aqui mesmo no Ceará, tivemos um movimento que foi realmente muito importante para a literatura brasileira: a Padaria Espiritual, que, com certeza, apesar de muito anterior, suas normas, textos, sátiras e manifestos, publicados no jornal O Pão, influenciou muitas unidades da federação.

A verdade é que a importância da Semana da Arte Moderna se restringiu a São Paulo, como a Padaria Espiritual ficou reservada aos cearenses. O evento de 22 “foi uma ação entre amigos, como se pode ver na própria revista Klaxon, em que eles escreviam uns sobre os outros”. Ruy Castro destacou que, nessas revistas, seguido de outros estudos, “passaram a reduzir a importância dos escritores cariocas que já eram modernistas antes do evento”. Um exemplo desse “linchamento” se deu quando o próprio Mário de Andrade considerou Lima Barreto como pré-modernista.

Tudo se modificou, no entanto, quando Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo, Dyonelio Machado e Erico Veríssimo apareceram a partir de 1930. Interessante é que, avisa Ruy Castro, assim como a Semana condenou os autores antes de 22 ao “pré-modernismo”, a Revolução de 30 instituiu um “pós-modernismo” que “despachou a Semana de forma fulminante para o passado”[11]. Ou seja, uma conexão cultural de retorno que nunca houve e nem poderia existir.

Por sua vez, a nova avaliação histórica revelou uma espécie de dogma em relação à Semana de Arte Moderna, em que o movimento revolucionário nas artes não poderia ser rediscutido, examinado e revisto. O que é, na verdade, um absurdo, porque não existem limites castradores à interpretação.

Aliás, a reviravolta do passado é comum quando existe um paradigma crítico capaz de criar condições para uma nova reinterpretação.

O que o escritor carioca questiona politicamente é que os próceres do movimento modernista eram conservadores e queriam que os novos escritores do romance regional de 30 – acrescento: a maioria com filiação ao Partido Comunista – fossem uma continuidade do movimento. “E com razão, porque Oswald, Menotti, Guilherme, Cândido Motta Filho e os outros eram produtos típicos da República Velha. Eram cama e mesa com Washington Luiz, Júlio Prestes e a elite quatrocentona, à qual vários deles pertenciam. Representavam tudo que a Revolução de 30 veio derrubar”.

A conclusão de Ruy Castro pode ser exagerada, mas é plausível: “O Modernismo só tinha sentido na República do Café com Leite e, quando esta acabou, os poemas-piada, pau-brasis e antropofagias foram enterrados junto”. Depois foram “ressuscitados e entronizados” pela academia. Noutras palavras: a ocorrência da dilatação do metal histórico, “com nomes martelados diariamente desde 1950 pela indústria acadêmica da USP”.

NETOS QUE ASSASSINAM AVÔS

Antes das posições de Ruy Castro que viralizaram nas redes sociais, Chico Buarque confirmou que não cantará mais a sua composição “Com açúcar e com afeto” em seus shows. Ele compreende que a letra está superada. Mas existem coisas que são relacionadas ao tempo em que foram realizadas. Não é possível, assim, alterar o passado, e atualizá-lo, passar a limpo. Talvez por isso, o pretendido silêncio, a recusa e o receio de ser interpretado negativamente na atualidade.

A decisão de não mais cantar o samba-canção que gerou polêmica, foi revelada pelo compositor no terceiro episódio da série O Canto Livre de Nara Leão. No documentário, o músico explica que a composição foi composta por solicitação de Nara, que estava em busca de uma canção “tipo Amélia”. Assim compôs a música. Como se observa nas outras imagens do seriado, como muitos compositores jovens que vieram depois, é o Chico expondo a Nara seu produto, suas composições, como uma espécie de portfólio autoral.
Provavelmente, a decisão pessoal de Chico foi tomada em decorrência de críticas antigas do movimento feminista ao longo dos anos da canção. Mas o artista anunciou a mudança sobre a música por ocasião da série documental [12] julgada pelo teor misógino da letra, em que uma dona de casa vive uma rotina árdua, mas faz concessões para agradar ao marido malandro que a sustenta.

Passado tanto tempo, não acho necessária essa “censura” auto-imposta pelo talentoso compositor. De fato, a narrativa é de um tipo “Amélia” que sofre com o comportamento boêmio e desrespeitoso do marido, as suas andanças fora de casa, à semelhança de outras composições, mas, ainda que insatisfeita, ela acaba perdoando os abusos, como fez a “mulher de verdade”[13].

O problema é que o tema da letra em tempos modernos se entremostra fora de contexto, repete o passado dos homens: a dualidade entre ser bom marido e ao mesmo tempo ser boêmio. E claro: a mulher era vítima dessa ultima opção que, aliás, cheirava a muita vilania, tão bem retratada, inclusive, no cancioneiro tradicional[14].

O ponto alto da questão é que o compositor não está proibido de retratar, numa letra de música, o machismo ainda reinante em muitas relações conjugais, sem que seja necessariamente a favor desse comportamento controvertido. O problema “é que, nas discussões geralmente binárias das redes sociais, esquece-se que, na canção, existe um eu lírico que difere da voz do autor”, esclarece Mauro Ferreira. Por sinal, o próprio Chico Buarque sempre foi mestre na feitura de letras escritas sob ótica feminina, todas abraçadas pelas maiores cantoras do Brasil por se tratar de canções de um dos maiores compositores do mundo em todos os tempos” [15].

A rigor, são temáticas repudiadas e podem ser debatidas em versos e músicas até como forma de fazer refletir esses pontos dissonantes da sociedade. Assim, um artista pode abordar a violência, o preconceito social, em seus trabalhos artísticos, sem que estes sejam violentos, ou muito menos preconceituosos[16].

O que não é possível para Chico Buarque é pensar em retocar o passado, revisitá-lo para modificar o que realizou, da mesma forma que é inviável para os estudiosos e entusiastas da Semana de Arte Moderna enfiar uma nova realidade, como o romance nordestino de 1930, e despachá-lo para o passado, á época original do evento, para dali extrair mais prestígio e importância.
Ainda que Chico Buarque explique que sua musica se vinculou a um tempo em que foi composta, época provavelmente “mais confortável”, posto que não havia cobranças das feministas, há um pensamento de retorno e revisitação em sua obra. Caso não fosse verdade essa ideia, então por que teria que cancelar a composição “com açúcar e com afeto” de seus shows ?
Consultando a ciência, o compositor não teria como voltar ao passado devido à lei de causa e efeito. Exatamente em decorrência desse forte princípio, uma pessoa não poderia retornar ao que passou para modificar um acontecimento eis que, por igual, mudaria o futuro. Simples: as linhas do tempo se conectam com causas no passado e geram efeitos no futuro, sendo imprudente pensar fora dessas linhas, em virtude da incessante evolução universal.

A partir de um exemplo prático para demonstrar essa impossibilidade, os cientistas chamam a atenção para o famoso “paradoxo do avô”. Se uma pessoa fosse enviada para o passado e assassinasse seu avô, sequer ele teria nascido. De outra forma, mas tomando por empréstimo a mesma ideia, postos em direção ao passado agentes ocidentais poderiam eliminar o adolescente Hitler e todo seu estafe de assassinos e aí, de modo benéfico, não teríamos o holocausto, hoje, pouco lembrado.

BAREIRAS AO ESQUECIMENTO

Não é ocioso alertar que o esquecimento histórico capaz de gerar repetição ocorre devido à “força messiânica do presente”. Certamente, não é possível atribuir ao passado um horizonte de experiências insatisfeitas, criando um contraponto com a verdade histórica, o que já aconteceu e passou, e se debruçar “em algo que não existe”, de tal forma “trabalhar a favor de uma concepção estática e linear que ela mesma tenta criticar”[17]. Porém, é imperiosa a discussão sobre o que fazer com ele, como evitar esse “alzheimer coletivo e social”.

Acostado em Walter Benjamin, teremos que reavaliar o universalismo ético, levá-lo a sério devido as injustiças sucedidas na sociedade e evidentemente irreversíveis, porque existe “uma solidariedade das gerações com os seus antepassados, com todos aqueles que foram feridos pela mão do homem em sua integridade física e pessoal”. Daí, consoante Habermas, “a força libertadora da rememoração não deve servir aqui, desde Hegel até Freud, para dissipar o poder do passado sobre o presente”, mas tão-somente “dissipar a culpa do presente para com o passado”[18].
Podemos visitar nossos antepassados, não deixá-los esquecidos, sem memória. É o que fazemos através de várias homenagens. Nomeando logradouros com seus nomes. Debatendo suas ideias. Enfim, libertando-os da moldura dos retratos, inserindo-os na continuidade. Mas eles não poderão se erguer e vir até a nós. A reciproca da visitação não é verdadeira. Por isso, será necessário agendar os esquecidos.

Por sua vez, sem os imperativos da memória, da verdade e da justiça, haverá apenas excesso sobre excesso, isto é, um esquecimento que impede um trabalho de depuração de fatos destrutivos e necessários à reconciliação para a saúde do corpo social. Assim, o silêncio tragado pelo presente impossibilita o verdadeiro relato e obsta a transmutação da experiência negativa em linguagem testemunhal, em prova contundente de que não podemos repetir tragédias e farsas, não só pelo pavor que representam como pela “eticidade” que deve direcionar nossos atos.

A rigor, o passado deverá ser relativamente fixo enquanto ponto de partida, sobretudo porque, uma vez irrecuperável, a imagem que passou “ameaça a desaparecer com cada instante presente que não se reconhece visado por ela”. Esse talvez seja o grande embaraço: uma impotência que gera um mal-estar social. E o pior: um presente perigoso, incontrolável, inteiramente entregue ao fetiche do capital, ao mesmo tempo, tecnológico, completamente desvinculado e autônomo.

Por isso é fundamental que seja discutida essa força estranha que nos impele a sempre ir em frente, sem nada discutir durante nossa caminhada. Sabemos que a reparação de uma injustiça jamais poderá ser feita completamente, mas que, ao menos, “se reconcilie virtualmente pela memória e seja integrada ao presente”[19], que se não se distancie tanto, sem “nenhuma chance ao discernimento”. É o caso, sobretudo, dos genocídios. “Mas”, em reverso, que seja também acompanhada por “todas as derrotas e retiradas decepcionantes, a partir das quais se aprende alguma coisa”[20].
Apesar das críticas de que o julgamento foi sobreposição dos vencedores sobre os vencidos, vale lembrar que o Tribunal de Nuremberg teve como objetivo maior manter a memória da humanidade e trazer para o momento atual, abrindo o discernimento, o debate desses aspectos que, infelizmente, nem sempre são lembrados, com o objetivo de prevenir que situações como semelhantes não ocorram novamente.
O fato consistente é que a história retorna devido à superficialidade e banalização de nossas relações sociais interessadas, produzindo “brancos” ou “perdidos na memória”. Portanto, precisamos firmar diversas barreiras impeditivas ao esquecimento, ao negacionismo, à falsa consciência. Essas cláusulas constituem a discussão dos problemas, o debate permanente, a correta informação, os compromissos entre gerações atuais e futuras, como normas comuns da sociedade, e, sobretudo, a responsabilização.
Esta última cláusula é importante porque, segundo a ideologia das teorias financeiras do capitalismo neoliberal, não importa o que acontece, mas jamais ele se assume responsável e grande parte da população é responsabilizada. Ou seja: paga o ônus de medidas erradas, planos econômicos indecentes, parcerias indesejadas, falta de direção mínima para um Estado mínimo. A propósito da pandemia, parece estranho, mas é verdadeiro observar que os únicos responsabilizados são as próprias vítimas.
Por fim, algo alentador: a discussão sobre as fontes e matrizes energéticas está bem agendada. Mas é comum ouvirmos: o controle ambiental protege, mas dificulta o desenvolvimento. O carbono ainda ameaça o planeta, mas os políticos e mandatários genocidas ameaçam muito mais. Portanto, a responsabilização deverá ser um item de primeira necessidade para a nossa real sobrevivência, inclusive democrática.
Se fizermos uma comparação com a Argentina, veremos a importância da responsabilização em regimes ditatoriais: no Brasil, nenhum militar foi condenado pelo sequestro, tortura e morte de opositores durante a ditadura, enquanto no país vizinho 43 deles foram condenados à prisão perpétua, e essa condenação constitui uma vitória em socorro aos direitos civis, uma lembrança viva, “de sorte que ninguém ameaça mais a democracia” [21].

[1] Agendatarsila.com.br/a-ideia-da-semana-de-22-foi-de-di-cavalcante-diz-o-escritor-e-jornalista-ruy-castro, acessado em 21/02/2022.
[2] Para Negt e Kluge, o radicalismo com que Kant formula os pensamentos básicos de um contrato entre gerações (presentes e futuras) é de uma atualidade perturbadora. Aliás, o Art. 225 da nossa Constituição Federal, que trata de matéria de direito ambiental, formula a prática dessa proposta compromissária.
[3] Essa repetição não é nova. Antes de Hegel, na antiguidade, existiu o “mito do eterno retorno”. Segundo ensinou Platão, o tempo era um movimento cíclico, fechado em módulos circulares, e, assim, tudo aquilo que acontecia no passado era repetido e retornava novamente. Era algo que vinha a ser da ordem do mundo, da passagem da desarmonia para a harmonia ou da desordem para a ordem. Assim, o que seria desordenado logo seria recomposto.
[4]O 18 Brumário de Luís Bonaparte, disponível em https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/brumario.pdf.
[5] Joel Klein, O papel politico da comunidade cientifica e dos intelectuais e casos da pandemia, in Reflexões sobre uma pandemia, organizada por Evânia Reich et ali, em Nefipo.Ufsc.br. acessado em 21/02/2022.
[6] Da peste negra à covid 19: 4 erros repetidos em toda pandemia, in Guia do Estudante, disponível em pesquisado em 21/02/2022.
[7] Anselmo Jappe, As aventuras da mercadoria para uma nova crítica de valor, Antígona, p. 120
[8] Pandemia: a história se repete como tragédia ou como farsa, Conexão. Ufrj.br. acessado em 21/02/2022.
[9] Rodrigo Simon, A semana de 22 e o modernismo no Brasil, pp.hexojornal.com.br, acessado em 21/02/2022.
[10] Cem Anos essa noite, facebook, texto circulado em 14/02/2022.
[11] Ruy Castro, A semana de 22 arrombou a porta aberta, correiobrasiliense.com.br, acessado em 21/02/2022.
[12] O canto livre de Nara Leão, dirigido por Renato Terra, que estreou recentemente no serviço de streaming.
[13] Eis a letra: “Quando a noite enfim lhe cansa / Você vem feito criança / Pra chorar o meu perdão”. Encerra a estorinha, voltando ao farrista: “Logo vou esquentar seu prato / Dou um beijo em seu retrato / E abro os meus braços pra você”.
14 Adelino Moreira em A Volta do Boêmio, interpretada por Nelson Gonçalves que, coincidentemente, marca o seu retorno como grande cantor popular, como na música de Chico Buarque existe um perdão da amada, mas, isso é bem desagradável na atualidade, reconhecendo uma situação subalterna, concedendo à mulher uma segunda posição em nível de preferência, o que seria desrespeitoso. No final das contas, a boa mulher compreende o boêmio: “abraçou-me dizendo, a sorrir… Vá embora/pois me resta consolo e alegria/ em saber que depois da boemia/ é de mim que você gosta mais”.
[15] Discussão sobre canção de Chico Buarque fica pobre se ignora espaço e função do eu lírico, https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2022/01/28.
[16] Machistas ou não, as músicas de Chico Buarque e de Adelino Moreira, compositores tão distantes, tiveram muita aceitação em determinada época e foram bem aceitas por diferentes grupos sociais. De volta ao passado, que não pode ser seletivo a ponto de ser atualizado, viva os saudosistas, mas, por favor, não mexam na saudade deles! ( Leio nos sites de música que Chico Buarque não cantará mais “Com açúcar e com afeto e que o passado não pode ser predileto, in blog Clareiras).
[17] Gustavo Racy, Entre Marx, Kierkegard e Benjmamin, teses sobre a ideia da repetição histórica, em , acessado em 21/02/2022.
[18] Jurgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade, Martins Fontes, p.22.
[19] Ob. Cit.p. 23.
[20] Oskar Negt e Alexander Kluge, O que há de politico na politica, editora Unesp, p. 35.
[21] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/no-brasil-a-historia-se-repete-como-farsa-e-tragedia /.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.

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Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.

1 comentário

  1. ANTONIO Valentim

    EU gosto de repetir a velha máxima de que a História é cíclica, pois mudam os personagens, o cenário, porém o enredo em geral não se altera tanto.
    De certa forma é o que diz Durval Aires em seu texto. Há, porém, semelhanças e diferenças muito em função do tempo e do espaço. Como amante das letras e da língua, considero sempre a diacronia, ou seja a mudança de tempo, dos costumes, da sociedade. Geograficamente, se numa sociedade plural como a nossa ou noutros cantões deste mundo.
    Chico Buarque e Nara Leão e a obra “Com Açúcar e Com Afeto” são exemplos disso. A Semana de Arte Moderna paulista também.
    Como eu comentei no Facebook, não vejo porque a auto censura do autor, mas compreendo a sua empatia. Apesar de ser obra dos anos 60, a obra musical reflete uma universalidade, infelizmente, que ainda hoje se repete. Mas aí, diferente de outras tantas, é a própria mulher que fala. Por conseguinte, vejo como um protesto e não como conformismo. Eu mesmo mergulhei no universo feminino de Chico Buarque de Hollanda quando compus um vídeo no YouTube sobre o músico e da forma como ele mergulha na alma feminina, retratando-a como ela é. Está lá, para quem quiser ver: “O Fantástico Mundo de Chico Buarque”, Bloguedovalentim!.
    Mas, resguardadas as devidas proporções, a história está fadada a se repetir. Isso não só nas artes, como na política. Não só espacialmente neste País de Militares e de Bacharéis, como no planeta inteiro, como agora vemos neste conflito entre Rússia, Ucrânia, OTAN e EUA.
    Paz e bem!