A razão de Acácio (I)

Em livro clássico, intitulado Fundamentos da Linguística Contemporânea, o semioticista brasileiro Edward Lopes discorre sobre o que define como “função outrativa” da linguagem. Entende-se por isso a capacidade do artista para despersonalizar-se, isto é, desdobrar-se em diferentes personalidades, tornar-se outro ou outros.

Esse é, supostamente, um dos mais caros objetivos perseguidos pelos autores do chamado Modernismo: essa ânsia de poder colocar-se em lugar do outro, de sabê-lo por diferentes olhares sobre o que se convencionou chamar de realidade. Numa palavra: essa vontade de ser ‘plural’.

Em termos rigorosamente estéticos, esse fenômeno decorre do fato de que o artista já não se contenta com a imitação ou representação da realidade, mas busca transfigurá-la, criando poeticamente realidades e mundos imaginados, nascidos de sua sensibilidade inventiva, do seu poder de criar e fantasiar, de apresentar o mundo não como é, mas como poderia ser.

O fenômeno tem em Fernando Pessoa, o modernista português, o exemplo mais conhecido. Com a adoção de heterônimos, o poeta inventou personalidades, algo bem diferente do vulgarizado pseudônimo, o nome falso com que muitos autores procuram esconder suas verdadeiras identidades.

O heterônimo vai além desse recurso, uma vez que seu uso pressupõe a existência de um ‘outro-eu’, um modo de ser e perceber o mundo, que pouco ou quase nada têm a ver com o autor, aquele que produz o texto extraindo-o de sua imaginação.

A paternidade desse procedimento, isto é, dessa prática de escrever como se fosse outro, é comumente atribuída ao filósofo Sören Kierkegaard (1813-1855), o existencialista dinamarquês da primeira metade do século XIX. Dos vários heterônimos adotados por ele (algo em torno de sete), Victor Eremita é, no entanto, o único de que se conhece uma biografia, diferentemente do poeta português que teve, ele mesmo, a preocupação de criar seres imaginados dotados de individualidade, para as quais, sabe-se, dedicou escritos de cunho biográfico que se tornariam imortais.

Entre escritores de coturno, pode-se lembrar aqui reflexões curiosas sobre o fenômeno da despersonalização: para Edgar Allan Poe (1809-1849), “todo pensamento, para ser breve, é sentido por cada um como uma afronta pessoal à própria pessoa”. Walt Whitman (1819-1892) dizia existir “dentro de cada homem uma multidão”. Nietzsche (1844-1902), cuja espiritualidade notabilizou-se por ser múltipla, inquieta, viva, não mediu palavras: “um homem só, só com suas ideias, passa por louco; e meu coração força-me a falar como se eu fosse dois”. De Baudelaire (1821-1867), restou conhecida a afirmação de que “o artista só é artista com a condição de ser duplo”. Para livrar-se de uma condenação pela escritura de seu livro mais conhecido, Gustave Flaubert (1821-1880) foi mais longe: “Madame Bovary sou eu”.

No Brasil, se não ocorreram procedimentos que justifiquem a qualificação de heterônimos, foram recorrentes e tornar-se-iam famosos os nomes falsos, os pseudônimos propriamente ditos, dentre os quais se poderiam citar aqui Antonio Crispim (Carlos Drummond de Andrade, 1902-1983), Mário Sobral (Mário de Andrade, 1893-1945), Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima, 1898-1983), Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923-1968) e tantos e tantos outros cujos nomes falsos os fariam popularmente conhecidos a ponto de se desconhecerem, muitas vezes, seus nomes verdadeiros.

Fenômeno equivalente vamos encontrar no que se define na Psicologia como ‘alter ego’, a personalidade alternativa de uma pessoa. A expressão, advinda do latim alter + ego, isto é, ‘outro eu’ é largamente usada para definir a invenção de uma personalidade artística, no cinema e na literatura sobretudo.

É nessa perspectiva, por exemplo, que fizeram no cinema o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o francês François Truffaut (1932-1984), para os quais os atores Erland Josephson e Jean-Pierre Léaud, respectivamente, prestaram-se a encarnar suas ‘personas’ em filmes que entrariam para a história do cinema mundial como verdadeiros documentos artístico-existenciais dos dois grandes cineastas.

No campo da prosa de ficção, li há pouco, a propósito, o belíssimo “A Razão de Acácio” (LetraSelvagem, 2022), mais recente romance de Clauder Arcanjo, cuja história assenta-se na convivência improvável do autor com o seu alter ego, Acácio, assumidamente inspirado na personagem de Eça de Queirós, e, como o Conselheiro do escritor português, de tal modo bem elaborado que não será muito afirmar que, sozinho, daria ele mesmo um romance.

A diferença, no entanto, sob algum aspecto, conta em favor do Conselheiro de Clauder Arcanjo, redimensionando a ordem de grandeza da personagem por um detalhe: na contramão do que era dominante na ficção realista, cujas personagens eram via de regra ‘planas’, personagens ‘de costume’, verdadeiros ‘tipos’, o Acácio do romance de Clauder Arcanjo assume, aqui e acolá, um nível de complexidade que salta aos olhos do leitor mais atento, o que torna a narrativa mais surpreendente e sedutora.

A razão, deve-se evidenciar, prende-se aos objetivos perseguidos pelo narrador, Clauder Arcanjo “ele-mesmo”, curiosamente construído de forma linear e previsível. É que a sua outra dimensão, esta sim, mais complexa, projeta-se, com a transparência que o artifício tenta ocultar, na figura da personagem inventada, Acácio, numa experiência estética que vai, também ela, de encontro ao que era mesmo uma característica marcante da literatura realista, a tendência de apresentar a ficção como se fosse verdade.

No romance de Clauder Arcanjo, há a curiosa inversão: a verdade é apresentada ao leitor como se fosse ficção. E o resultado dessa experiência, enquanto construto artístico, é notável.

Mas, parodiando a última frase do livro, isso já é trama para uma nova coluna.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

2 comentários

  1. Raí Lopes

    Clauder foi devagarinho… Começando pela sua Licânia fictícia introduz Santana do Acaraú, a sua terra natal. Os personagens, todos, são oriundos, verdadeiros (salvo um pseudônimo aqui e acolá), do dia a dia santanense. Aí começa a saga de Acácio, o alter ego de Clauder, e suas mirabolantes filosofia e intelectualidade. E como o autor, ele, o próprio, despeja o seu mal humor nas entrelinhas do que escreve! Claro, em contrapartida ao que jamais faria ao próximo… fora do papel. Clauder é um grande escritor. E A Razão de Acácio, que deságua como um personagem atemporal, ainda vai nos revelar muito mais do autor.

  2. Cicero braz de almeida

    Lendo essas belíssimas reflecões autores tão ímpares, até me coloquei no meio deles na medida em que fustigos textos e me sinto abstraído de mim. Às vezes, freios os impulsos. Mesma sensação senti quando li Quase Romance, de sua autoria, talvez pelaa proximidade que nossa amizade nos oferece. De outro modo, visitando a casa que fora de de Dorotheia Seixas, sobreveio-me o Dirceu, de Thomás Antônio Gonzaga no seu incontornável Marília de Dirceu. Alfim, pressenti que o Acácio retornaria, se não com a rapidez dos anteontens, mas em breve incursão. Chegou e passarei a ler.