Uma aventura em curso

No dia 30, a Casa Civil assumiu o controle da narrativa do governo federal sobre a questão da covid-19, apresentando um novo formato das coletivas de imprensa, retirando-as do território do Ministério da Saúde para realizarem-se agora no Palácio do Planalto, além de demarcar a presença de outros ministérios. Em resumo, retirou-se a luz que recaía sobre Luís Henrique Mandeta, cuja popularidade atual está bem maior do que a do presidente Jair (sem partido e sempre preocupado com as eleições de 2022), colocando-se em prática uma máxima maquiavélica: “governar é dividir”. Além disso, o governo quer concentrar o controle do fluxo das informações submetendo à “análise prévia” da Secretaria de Comunicações todos os comunicados oficiais para “unificação do discurso da narrativa”. Mas não esclareceram o que querem dizer com “unificação do discurso”.

 

No livro “A revolução dos bichos”, do escritor britânico George Orwell (1903-1950), depois de Napoleão assumir o poder, nomeia o porco Garganta como responsável pela mídia do novo regime, o unificador do discurso. Cabia a Garganta a tarefa de fazer as análises prévias das comunicações do governo da Fazenda dos Bichos, para manipular os corações e as mentes dos animais comuns, diante dos interesses dos donos do poder, por meio de fatos, imagens e argumentos convincentes publicados em suas comunicações. Por exemplo, a Constituição original da Fazenda determinava: “nenhum animal pode matar outro animal”. Garganta então a modificou para “nenhum animal matará outro animal, sem motivo”. Quanto à lei que tratava da igualdade entre os bichos, Garganta a refez para “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

 

Em um determinado momento da coletiva de imprensa de ontem, mais precisamente na quarta pergunta, quando o jornalista Daniel Verteman, do Estadão, questionou sobre o passeio que o capitão havia dado pela cidade de Brasília e arredores no domingo 29, sem máscara protetora (que evita de contagiar pessoas que fiquem próximas a ele, caso tenha dado positivo o seu exame, que ninguém sabe até hoje), provocando aglomerações sociais contrárias às orientações da OMS, não houve resposta por parte daquelas autoridades, sendo encerrada naquele momento a coletiva de imprensa prevista para oito perguntas. Pergunta-se: como fica a população brasileira diante da falta de esclarecimento deste contraditório entre a postura do presidente Jair e as recomendações oficiais do Ministério da Saúde?
Depois do tour feito por Brasília, o presidente, como de praxe, conversou com sua claque de apoiadores e alguns jornalistas na entrada do Palácio da Alvorada. Fez novamente a propaganda, a exemplo de Trump, do remédio hidoxicloroquina como opção ao combate à covid-19. Contudo não se reportou ao Interferon Alpha 2B, medicamento antiviral, produzido por Cuba, usado com sucesso pela China para tratar seus pacientes com coronavírus. A associação farmacêutica chinesa indica o Interferon como o primeiro produto de ação antiviral para combater o vírus, em meio a trinta opções que estão no mercado farmacêutico. Mais de 15 países estão interessados na aquisição deste medicamento. Todavia, o presidente Jair não fez referência ao Interferon. Por quê? Por radicalismo ideológico, em detrimento da saúde coletiva?

 

Ele chegou a afirmar naquele momento que “o vírus tá aí, vamos ter que enfrenta-lo, mas enfrentar como homem, pô…, não como moleque!” O que significa “enfrentar como homem”? Que modelo de humanidade ele está apresentando em sua trajetória? Um homem que em seus vídeos destratou publicamente uma instituição como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), chamando-a de “a parte podre da Igreja Católica”? Um homem que ao referir-se a outros humanos iguais a ele, membros de comunidades quilombolas, usou ARROBA, unidade de peso para pesar o gado bovino? Um homem que afirma que “o erro da ditatura foi torturar em vez de matar”? Um homem para quem “através do voto você não vai mudar nada nesse país; só vai mudar se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, matando uns 30 mil”. É esse tipo de homem que ele tem em mente e representa? E para ele, quem seriam os moleques: os governadores que estão fazendo o percurso em sintonia com a OMS e o Ministério da Saúde?

 

Para finalizar a conversa, Jair disse que estava tendo um “insight”, com vontade baixar nesta semana novo decreto liberando outras categorias para o retorno ao trabalho, como o fez em decreto anterior autorizando a realização de cultos religiosos e funcionamento das casas lotéricas, dois parágrafos do decreto cassados pela justiça federal. O que fica claro nisso tudo é a sua incapacidade de pensar de forma articulada o sistema de saúde, como um todo, cuja missão é atender a todos os cidadãos, e não apenas àqueles com problemas de convi-19. Mas seu foco é a sua reeleição. Sabe que corre o risco de ser o primeiro presidente a não consegui-la: FHC, Lula e Dilma foram reeleitos. A possibilidade de não reeleição maltrata bastante o ego perturbado de um narcisismo patológico, como diria Erich Fromm. Por isso está partindo para o tudo ou nada. O Brasil vai submeter-se a mais essa aventura?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .