A UM PASSO DA ANOMIA, por Rui Martinho

Acusações, ameaças a juízes e órgãos do Ministério Público substituem argumentos e provas no discurso da defesa de réus. Parcelas expressivas da sociedade defendem personagens de conduta cuja ilicitude é evidente. Invasões rotuladas como “ocupação”, em flagrante exercício arbitrário das próprias razões são considerados como justiça social. Corrupção generalizada tornou-se visível em todos os escaninhos da sociedade. Instituições democráticas têm meios de defesa contra minorias transgressoras. Falta-lhes, todavia, instrumentos de defesa, na esfera política, contra maiorias de conduta desviada prevalecentes nos poderes da República. O enfrentamento de tal situação dependeria do Poder contramajoritário: o Judiciário. O Direito Processual Penal, por diversos motivos, tem se mostrado pouco eficaz na persecução penal, principalmente quando os réus integram os poderes da República.

A descrença da sociedade nas instituições é outro dado grave. O desânimo decorrente da desesperança gera passividade de uns e rendição de outros, que se deixam levar pela sedução da transgressão. A ausência de líderes, a falta de partidos políticos dignos deste nome, destinados a servir de canal das aspirações da sociedade é mais um elemento da crise sem fim. A lição de Aristóteles (384a.C – 322a.C.), segundo a qual a democracia tenderia a degenerar em demagogia, atualmente nomeada eufemisticamente como populismo, parece confirmada entre nós.

A exaltação de ânimos dificulta a solução negociada dos graves problemas nacionais. A política norteada pela convicção parece substituir a boa fundamentação das propostas econômicas e sociais. Ética teleológica, fundada na excelência dos fins, domina a cena. Alegar fins socialmente justos serve de panóplia para a mentira, a agressividade, o crime e as propostas inviáveis. A ética que tem fundamento em finalidades virtuosas não é ética. É engodo, apesar do messianismo dos seus arautos. A exaltação de ânimo não é prova de integridade, ainda que se apresente como “indignação cívica”, que no outro é interpretada como ódio. Niilismo, relativismo cognitivo e axiológico e hedonismo problematizam a convivência civilizada. Onde não se reconhecem verdades nem valores não resta solução para os conflitos senão a força. Quem não aprende com os erros está fadado a repeti-los. A afirmação segundo a qual os nossos problemas não se resolvem, apenas se agravam, nos leva a temer que desta vez eles tenham se agravado demais.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

Mais do autor

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.