Um país desmoralizado

NO MOMENTO EM QUE O BRASIL conta mais de 18.000 (dezoito mil) óbitos oficiais causados pela pandemia da Covid-19, Bolsonarorepresentante de milhões de cristãos e cristãs brasileiras, carismáticos católicos, membros de movimentos marianos, integrantes de fazendas de recuperação, fiéis de igrejas evangélicas pentecostais, entre outros – confirmando sua tara pela tortura, sarcasticamente foi às mídias sociais na noite de ontem, terça-feira 19, para fazer piada com o flagelo pelo qual está padecendo a maioria das famílias brasileiras e o corpo de profissionais de saúde. Como líder de uma nação, numa atitude criminosa, chacoalhou para o mundo ver e ouvir: “A direita usa cloroquina, a esquerda usa tubaína”, em total desprezo pela vida humana, que para os cristãos é dom do Deus que Bolsonaro diz seguir.

 

Mas ele não alçou o poder sozinho. Foi lá colocado pelas mãos de 57 milhões de votos. Exaltou o uso de armas como forma de solução dos conflitos sociais; atacouverbalmente mulheres, indígenas, pessoas negras, pessoas homoafetivas; defendeu pelos quatro cantos o uso da tortura, elogiando a figura do torturador Ustra, assim como o seu vice-presidente Mourão o fez em 28/02/2018 chamando-o de herói. As palavras de Bolsonaro usadas aos berros em seu último discurso de campanha, a uma semana do segundo turno da eleição, foram: “faxina, bandidos, terrorismo, Ponta da Praia, Forças Armadas, marginais, cadeia, lei no lombo”. Todo mundo viu e ouviu.Como também vê e ouve suas mentiras descaradas e seuspalavrões nas mídias sociais e entrevistas de imprensa.

 

Além das forças religiosas cristãs, contou com a forte e sistemática articulação jurídico-midiática comandada por Sérgio Moro e Rede Globo. Moro, assim que foi proclamada a vitória eleitoral, largou 22 anos de carreira na magistratura federal para ser o seu ministro da justiça.Em discurso numa cerimônia de formatura de policiais federais no final do ano passado, Bolsonaro afirmou: “Grande parte do que acontece na política do Brasil, devemos a Sérgio Moro. Se ele não tivesse cumprindo bem sua missão (enquanto juiz da Lava Jato arquitetando a prisão ilegal do ex-presidente Lula), eu não estaria aqui (na presidência da República).

 

Bolsonaro contou também com o apoio do Capital Bilionário, a partir do momento em que Paulo Guedes, fundador do Instituto Millenium, do Banco Pactual e de vários outros fundos de especulação financeira, mergulhou de cheio em sua campanha, garantindo ao capitão adentrar as salas da nata empresarial nacional. Como afirmou Paulo Skaf (Presidente da FIESP), na Folha de São Paulo (22/01/2020): “Apoiamos o governo Bolsonaro. Tivemos a coragem de ser a primeira entidade a apoiar o impeachment de Dilma Rousseff”. Desde o início, o capitão já possuía o apoio das Forças Armadas, coordenado pelo gal. Villas Bôas, conforme revelou explicitamente em seu discurso na posse do ministro da defesa, gal. Fernando Azevedo, no dia 02 de janeiro de 2019: “Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui. O que nós já conversamos morrerá entre nós”. Contou com a força política dos bolsodórias, bolsowitzels, bolsozemas, entre outros, dos estados brasileiros. Portanto, ele não é resultado de si mesmo, mas da articulação de vários setores da elite social, política e econômica do Brasil.

 

A denúncia feita pelo empresário Paulo Marinho (suplente do senador Flávio Bolsonaro), um dos mais íntimos apoiadores de Jair, em entrevista à Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, vem colocar ainda mais a nu o cinismo e a hipocrisia que perpassam a construção da candidatura e eleição de 2018. Revela claramente como os Bolsonaro chegaram ao Poder. A denúncia central de Marinho consiste em apontar, depois do primeiro turno da eleição, em outubro de 2018, que Flávio Zero Um foi alertado por um delegado da Polícia Federal (PF) sobre o fato de Fabrício Queiroz (cadê Queiroz?), braço direito da Famiglia Bolsonaro e operador da “rachadinha”, ser alvo da Operação Furna da Onça, uma vez que parte desse dinheiro apurado, segundo The Intercept Brasil, era entregue ao assassinado Adriano da Nóbrega (ex-chefe do Escritório do Crime) para tocar uma construtora na zona oeste do Rio de Janeiro. A fim de não prejudicar a eleição de Bolsonaro, a PF adiou a execução da operação para após o resultado final do pleito.

 

Pergunta-se: Por que somente agora Paulo Marinho vem fazer essas denúncias que possuía desde 2018? Quem além de Marinho, dos Bolsonaro, dos seus advogados, da família Queiroz e do delegado da PF sabiam desse fato? Gustavo Bebianno, coordenador da campanha presidencial, que deixou segredos guardados num celular nos Estados Unidos? Membros do Ministério Público que acompanhavam essa Operação? Será que o então juizSérgio Moro não sabia desses fatos, uma vez que Furna da Onça era um braço da operação Lava Jato? Foi justamente Moro que, na reta final da campanha, requentou o depoimento de Palocci e publicou na Rede Globo para atacar diretamente o candidato Fernando Haddad que vinha crescendo naquela reta final. A capa do jornal O Globo do dia 02 de outubro, cinco dias antes da eleição: “Palocci: eleições de Dilma custaram R$1,4 bilhão”. Já nas capas de O Globo do dia primeiro de novembro de 2018, imediatamente após o resultado final, trazia como manchete: “Bolsonaro dá carta branca a Sérgio Moro”. E o jornalista Merval Pereira escrevia: “Moro fará um Plano Real contra a corrupção”.

 

Durante 300 anos de Colônia, a tipografia foi uma atividade proibida. E os livros circulavam no Brasil sobre forte fiscalização da polícia. Somente a partir da chegada da Corte portuguesa em 1808 foi criado um mercado do livro, que tinha como um dos objetivos centrais fazer uma espécie de adestramento dos sentidos da população, por meio da publicação de uma variedade de romances morais com a tarefa de criar algum tipo de coesão ideológica entre os componentes das elites brasileiras, uma espécie de cimento ideológico que ligassem tipos sociais díspares que frequentavam a corte no Brasil. Essas novelas enfatizam valores como a comunhão, a gratidão, a honestidade, a decência, a retidão dos costumes, a ingenuidade, a candura, o amor puro, a paz e a felicidade. Em Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, por exemplo, a relação entre os escravizados e seus senhores é harmoniosa, livre de conflitos, o clima que os envolve é de zelo e afeição. A escravidão, nesse sentido, não é um mal em si, mas sua qualidade depende do caráter dos senhores:com brancos bons, a escravidão é boa; com brancos maus, ruim. Nessa categoria de texto literário, os escravos eram colocados em posição de fraternidade no trato com os brancos, numa posição passiva diante da escravidão. (Neves e Villalta in A Impressão Régia e as novelas).


Essa
é a marca do tempo presente, onde o bolsonarismodita sua estratégia desmoralizante de nossas instituições e de nossa cultura, com a cumplicidade e passividade de nossas elites nacionais, todas responsáveis pelas mortes dos brasileiros e pelo sofrimento de nossas famílias vítimas da pandemia. Como dizia Chaplin, “cada país tem o ditador que elegeu”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .