UM MARCO CIVILIZATÓRIO, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Em maio de 2012 a democracia brasileira deu um passo importante rumo ao seu amadurecimento por meio da implantação da Comissão da Verdade: um marco civilizatório decorrente das lutas do povo brasileiro pelo fim da ditadura militar, pela conquista das liberdades democráticas, pela anistia aos presos políticos, pelas eleições diretas, pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte, pela estabilidade econômica, pela busca do crescimento com inclusão social e redistribuição de renda. Uma redemocratização construída passo a passo, e à nossa maneira, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, como também mediante a construção de pactos nacionais de grande valor, traduzidos na Constituição de 1988.

Como afirmava o memorável Ulysses Guimarães, “a verdade não desaparece quando é eliminada a opinião dos que divergem do poder. Ela não mereceria esse nome – verdade – se morresse quando censurada”. A verdade, de fato, não morre por ter sido ocultada: ela continua lá, esperando o tempo amadurecer para finalmente emergir e tornar-se patrimônio comum de um povo livre e soberano.

Regimes autoritários sobrevivem pela interdição da verdade. Foi isso que vivenciamos durante os anos da ditadura militar então vigente em nosso país a partir de 1964. É obrigação de um Estado de Democrático de Direito fazer o seu resgate. Verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento ou ocultação. Verdade é memória, é história: a capacidade de recordar e contar o que aconteceu, possibilitando ao coração e à mente darem sentido à continuação da existência humana presente e futura.

Como bem definiu a presidente Dilma Rousseff, “a ignorância sobre a história não pacifica, mantém latentes mágoas e rancores. A desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância. A sombra e a mentira não são capazes de promover a concórdia”.

Encontra-se no ensinamento milenar da tradição cristã a expressão “a verdade vos libertará”. Portanto, o bem comum, fundamento sobre o qual deve se apoiar qualquer projeto de democracia, não pode florescer num terreno de engodo e de “fake news”. O bem comum só pode ser verdadeiramente bom se for edificado sobre a rocha da verdade. Nem o ódio nem a mentira nos libertam; pelo contrário, são fontes de opressão de humanos contra humanos. Ser livres significa estar orientados para agir em função do bem pessoal e coletivo. É precisamente por meio de suas ações – políticas, econômicas, sociais e pessoais – que os seres humanos se aperfeiçoam enquanto tal, formando o mundo ao seu redor e formando-se como pessoas. Os atos humanos não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas, mas enquanto escolhas deliberadas qualificam moralmente o sujeito que os pratica e determinam a sua profunda fisionomia interior. Criamo-nos e recriamo-nos pelas escolhas e ações que deliberadamente praticamos.

Assim a ordenação racional da ação humana para o bem na sua verdade, com a procura voluntária e incansável deste bem, conhecido pela razão, constitui o cerne da moralidade. E nisso nenhuma pessoa ou governo democrático pode esquivar-se a perguntas fundamentais que orientem o seu agir cotidiano: o que fazer? Como discernir o bem do mal? E uma pergunta fundamental a se colocar é: que bem devemos buscar e promover? Com certeza aquele que garanta a felicidade de todos os sujeitos a partir dos mais vulneráveis existencialmente. Agir com convicção e exigência irreprimíveis para proteger a vida humana em suas diversas dimensões, criando as condições para a plena solidariedade das pessoas na família e na sociedade, tendo em vista um desenvolvimento humano integral para todos os cidadãos e cidadãs.

Conhecer o resultado do trabalho da Comissão da Verdade poderá produzir um grande bem ao nosso povo na medida em que permitir uma reflexão mais amadurecida do quanto é importante encontrar os caminhos moralmente corretos para a construção do bem comum. Não basta fazer boas obras, é preciso fazê-las por caminhos corretos, éticos, moralmente justos. Como lembra a Regra de Ouro proposta na maioria das religiões: não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que fosse feito a nós. Com certeza, nenhum de nós gostaria de ser torturado.

Pensar uma nova perspectiva democrática requer que assumamos em nossas ações pessoais, enquanto cidadãos no espaço da micropolítica, como em nossas ações institucionais na responsabilidade de agentes investidos de poder, uma postura moral que nos leve a encontrar caminhos justos na construção do bem de nossas coletividades local, nacional e internacional.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .