Um certo capitão de milícias

[…] o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.

General Ernesto Geisel

O título deste escrito comporta uma adaptação dos títulos de dois romances brasileiros, a saber, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e Um certo capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo. O escrito tangencia o primeiro livro, anotando que era no tempo do Rei”, quando Leonardo, fruto de uma pisadela e um beliscão entre o oficial de justiça Leonardo-Pataca e a saloia Maria e futuro sargento de milícias, começou a fazer as suas má-criações, estripulias e extravagâncias.

No esforço explicativo acerca da sociedade e cultura brasileiras, a novela de Manuel Antônio de Almeida deu ensejo à formulação, por Antonio Candido, do que chamou de “dialética da malandragem (1971). Por sua vez, no artigo A guerra dos relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a “dialética da marginalidade” (2001), propondo abordagem alternativa, o ensaísta João Cezar de Castro Rocha salientou que, se a “dialética da malandragem” supunha uma forma descontraída, jovial, de lidar com a injustiça social e o cotidiano, a “dialética da marginalidade” impõe-se mediante a exploração e mesmo a exposição metódica da violência, a fim de explicitar o dilema da sociedade brasileira. Pretende, pois, superar a desigualdade social mediante o confronto, em lugar da conciliação; através da exposição da violência, em lugar de seu ocultamento.

Talvez, com os devidos cuidados e mediações e observada a diversidade dos registros, o confronto das duas dialéticas ajude a lançar luz sobre o processo político na conjuntura. Assim, saindo da literatura e ingressando no mundo da política, observa-se que a guerra-fria das narrativas alcançaram o nível de guerra-quente da realpolitik. De fato, a parcialidade que chegou à presidência da República não tem limites na busca dos seus objetivos políticos, relativizando a institucionalidade, utilizando-se da democracia para debilitar a democracia, aproveitando-se da tolerância para ampliar a intolerância. O cientista político Luiz Werneck Vianna já acentuou que as últimas eleições ocasionaram a chegada do mundo das milícias ao aparelho de Estado e à representação política, milícias estas que não são as mesmas das do sargento   acima referido, que eram milícias da ordem. As de hoje são milícias da desordem, cujo existir e atuar quebram o monopólio legítimo da coerção peculiar ao Estado e ocasionam a deterioração do Estado de Direito. Apropriando-se de setores populares nas urbes brasileiras, com candidatos, financiamentos, violência sobre os eleitores, tais milícias, juntamente com as facções, passaram a influenciar o processo eleitoral.

Por sua parte, como componente do espectro de violência real e simbólica que marca o Brasil neste momento, o bolsonarismo tem colocado sob constante tensão o experimento político-constitucional, tentando a desinstitucionalização da democracia. O presidente da República é parte integrante da desordem, quer pelo discurso deslegitimador do papel do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, da imprensa e da ciência, e da existência da ordem federativa, quer pelas ameaças reiteradas de intervenção manu militari ou pelo incentivo ao acossamento por parte de milícias reais e virtuais da sua área de influência. Recentemente, depois de desmistificado o pretenso apoio do que foi denominado de “meu exército” na busca de medidas extraconstitucionais, gerando a crise militar que desembocou na demissão do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, exemplo eloquente de contribuição para a confusão política foi a tentativa de um dos porta-vozes presidenciais no Congresso Nacional de levar avante projeto de lei com alterações perigosas na Lei da Mobilização (Lei nº 11.631, de 27 de dezembro de 2007). Assim, ampliando a mobilização nacional própria dos tempos de guerra externa, se criaria a base jurídica para a mobilização nacional em emergências de saúde pública, colocando-se, inclusive, as polícias militares sob o talante presidencial, em detrimento dos governadores, além da possibilidade de convocação de civis. A retirada do comando das polícias militares dos governadores de Estado reforçaria, com certeza, a cruzada presidencial contrária aos contrapontos, salvaguardas e contrapesos da separação horizontal e vertical dos poderes do Estado brasileiro. Além do mais, considerando as franquias governamentais concedidas a civis no que respeita ao acesso, compra e uso de armas de fogo e munição, cabe perguntar: que civis?

Por tudo, pode-se concluir que, salvo melhor juízo, a dialética da marginalidade sobrepujou a dialética da malandragem na vida política brasileira, e talvez o sargento de milicias da ordem tenha sido promovido a capitão de milicias da desordem no que concerne aos prospectos da democracia e do Estado de Direito.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).