O Brasil é um país complexo e complicado.
É complexo porque a produção e a reprodução da sociabilidade da dominação e da resistência são tecidas juntas, numa dinâmica em que o território, ao longo do seu processo de conquista e colonização pelos portugueses, foi pensando a partir de interesses externos; porque os grupos ou os setores do capital nunca tiveram interesse em elaborar um projeto nacional para o país, sempre preferiram ser sócios subalternos de investidores internacionais.
É complicado poruqe em todas as configurações e reconfigurações da ordem internacional, o Brasil, bem como toda América Latina, foi sempre desenhado pelas forças hegemônicas europeias ou norte-americanas dentro de uma geopolítica em que lhe cabia ser uma economia primária exportadora e uma plataforma de escoamento de capital para o sistema financeiro internacional. Por isso, mesmo que a partir de 1930, quando iniciamos o nosso processo de modernização econômica ou industrialização, por meio de uma política de desenvolvimento porsubstituição de importação, as tentativas de implantar uma dinâmica autônoma e competitiva de industrialização nacional foram sempre abortadas pelo capital internacional com o apoio de parte do capital nacional.
O Brasil, que no pós-guerra desenhou um caminho exitoso dentro da realidade da América Latina, chamou a atenção pelo desempenho de sua economia, identificada como “o milagre brasileiro”, mas não conseguiu alongar o seu projeto desenvolvimentista para além da década de 1970. O fim do modelo fordista no início dos anos 1970, o processo de acumulação flexível, a reestruturação produtiva dos anos 1980, o neoliberalismo nos anos 1990, o fim da Guerra Fria e a adoção de uma economia de mercado por parte da China deixaram a competição intercapitalista mais acirrada e perversa, tornando os modelos desenvolvimentistas nos países periféricos e o keynesianismo nos países centrais incapazes de conter as contradições inerentes ao novo ordenamento econômico mundial: a globalização. Políticas de distribuição de renda, de inclusão social e Estado de bem-estar social, que antes eram consideradas como medidas paliativas, de assistencialismo e classificadas como políticas reformistas por parte da esquerda revolucionária, passaram a ser bandeiras de lutas e agenda utópicas da esquerda. Nesse mesmo cenário, a chamada socialdemocracia ou centro, que defendiam o Estado de bem-estar social ou a terceira via, entre o capitalismo e o socialismo, passaram por um processo de mudança, assumindo o único projeto econômico possível na crise da modernidade: o neoliberalismo.
No Brasil, o neoliberalismo implicou, por parte do capital, no desmantelamento de toda herança desenvolvimentista e a implantação de um Estado mínimopor meio de privatizações; impliciou no fortalecimento do extrativismo como modelo de exploração econômica (reprimarização da economia por meio da produção de commodities) e do rentismo (capital improdutivo).
No período de duas décadas (1980 – 1990) de enfrentamento à crise econômica do modelodesenvolvimentista e de resistência à Ditadura Militar, as esquerdas conseguiram criar um consenso ético-político em torno da necessidade do combate à pobreza e àexclusão social por meio de políticas públicas de distribuição de renda e participação social, consenso que culminou com a eleição de dois mandatos (1994/1998 e 1999/2002) de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quefortaleceu o Plano Real do governo Itamar Franco, criou programas sociais abrigados na Comunidade Solidária e, ao mesmo tempo, implantou medidas neoliberais do Consenso de Washington. Em seguida, tivemos a chegada do PT ao governo, com a eleição de dois mandatos(2003/2006 e 2007/2010) de Lula e dois mantados de Dilma (2011/2015 e 2015/2018). Lula implantou um conjunto de projetos sociais bem mais amplos e de maiores impactos do que os adotados por FHC, mas também seguiu as políticas neoliberais indicadas pelos técnicos do Banco Mundial e expandiu o extrativismo e o rentismo.
Os dois governos de Lula implantaram o neodesenvolvimentismo, que o cientista político petista André Singer, no seu livro “Os sentidos do lulismo”,classificou como sendo um pacto conservador de reforma gradual. Projeto que, para alguns, tornou-se possível devido à conjuntura internacional favorável ao extrativismo ou ao chamado “boom das commodities”. O projeto neodesenvolvimentista, ou lulismo, consistiu naimplantação de um modelo de diminuição da pobreza com a manutenção da ordem capitalista neoliberal medianteuma política do ganha-ganha, ou seja, garantia de grandes rendimentos para o capital financeiro, para o agronegócio e para as indústrias, ao mesmo tempo em que fazia política de inclusão social, valorização salarial e distribuição de renda.
No que pese ao sucesso eleitoral e à importância das políticas sociais dos governos petistas para a maioria da população de miseráveis, pobres e parte da classe média,que conseguiram melhorar suas condições de vida durante uma década, e, ainda, no que pese à recuperação e aoreaparelhamento da estrutura das instituições do Estado,sucateadas consecutivamente desde os governos militares, e da expansão das universidades e do Sistema Único de Saúde (SUS), este foi crucial para o enfretamento da pandemia da Covid-19. O lulismo, ou seja, a implantação de um modelo de diminuição da pobreza com a manutenção da ordem capitalista neoliberal (extrativismo e rentismo), não conseguiu passar pelas consequências da crise do sistema financeiro mundial de 2008, quando, a partir de 2012, a ressaca da crise que havia se deslocando do seu epicentro, os Estados Unidos, para Europa, volta-separa a América Latina, desmontando a festa dos chamados “governos progressistas”.
A derrota dos governos progressistas na América do Sul, – por meio de uma ampla campanha de oposição de direita, tendo como pano de fundo a acusação de práticas de corrupção combinadas, em alguns casos, com aplicação de golpes, além da oposição de esquerda interna, que os acusavam de terem aderido ao neoliberalismo, como é o caso do Rafael Correa, no Equador, e do Lula, no Brasil, onde alguns membros do PT saíram do partido e fundaramo PSOL – colocou em xeque os modelos de desenvlvimento por eles adotados; as condições que permitiram a manutenção de uma política que possibilitaram gerir o governo na base do ganha-ganha, pela conciliação entre as classes sociais se esgotavam. O prolongamento da crise de 2008 passou a acirrar a disputa do capital contra o capital, uma competição orientada pela lógica crescente da valorização e acumulação do capital.
A prologanda crise de 2008, que provocou a queda da taxa de lucro no mercado mundial, acirrou a luta intercapitalista, com o cada setor( industrial, financeiro, extrativista) tentando manter individualmente sua taxa de lucro. Nesse cenário, ter o controle da política econômica do Estado, do seu aparato legislativo e jurídico, passou a ser de fundamental importância para a aprovação de medidas favoráveis ao capital, como política de investimentos, que implica impedir que o orçamento público possa ser gasto com políticas sociais, manutenção de políticas públicas constitucionais e gastos com servidores públicos. Diante disso, passou a ser imperial controlar o aparelho do Estado para fazer reformas (trabalhista, da previdência, fiscal, administrativa, independência do Banco Central, privatizações, política de congelamento dos gastos públicos) que possibilitem o aumento da taxa de lucro dos capitalistas. No discurso neoliberal é preciso que o país volte a crescer, ou seja, a valorizar o capital e o processo de acumulação de riquezas.
Uma das lições que parte da sociedade não entendeu ,e que o PT ignorou, é que a racionalidade capitalista se orienta pela lógica crescente da valorização do capital e do acúmulo de riquezas, que somente em alguns momentos conjunturais da disputa política se torna vantajoso ou uma necessidade estratégica para o sistema permitir combinar distribuição de renda com a manutenção da ordem sistêmica. Portanto, o que muitos desejam com a volta de Lula e do PT ao governo é o retorno do neodesenvolvimentismo, ou seja, o pacto conservador com reformas graduais. Isso acontece porque a maioria das pessoas que foram atingidas pela reforma gradual, por meio de algum tipo de ganho promovido pela ação de governo petista, pensa que a volta de Lula será uma oportunidade para “ser feliz” outra vez. No entanto, esses sujeitos desconhecem as tramas da lógica capitalista e da luta política, pensam que ordem política se define pela narrativa moral do candidato, daí porque muitos embarcaram com Bolsonaro, imaginando-o como um homem autoritário, firme, que seria implacável no combate à corrupção.
A INTERRUPÇÃO DO GOVERNO DILMA
A forma escolhida pelo capital no Brasil para se livrar do petismo, ou seja, das reformas graduais mediante o pacto conservador neoliberal, foi a interrupção do segundo mandato do governo Dilma, uma vez que seus representantes não conseguiram tal feito por meio das eleições. Ao terem seu candidato, Aécio Neves, do PSDB, derrotado no segundo turno das eleições presidenciais,passaram a articular uma aliança antidemocrata ampla para interromper o segundo mantado da Dilma, por meio de um golpe, cujo motivo alegado foi uma piada, uma invenção protofascista tupiniquim chamada de “pedaladas fiscais”.
Os golpistas, que negavam o golpe, e os analistas e jornalistas, comprometidos com o sistema, sustentaram que o caso de interrupção do mandato da Dilma foi um impeachment, ficaram sem discurso, pois a Revista Veja, na sua edição n.º 2.722, de 22 de janeiro de 2021, publicou uma matéria na qual Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, revela que o impeachment daentão presidente Dilma Rousseff teve sua primeira articulação a partir de uma reunião secreta, ocorrida na antevéspera do feriado de Nossa Senhora Aparecida, no ano de 2015, no apartamento do deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), um prédio de luxo localizado na Praia de São Corando, zona sul do Rio de Janeiro, e contou com a participação do líder do PSDB na Câmara, o deputado Carlos Sampaio, e de Bruno Araújo, também tucano. Os detalhes da trama vão sair no livro “Tchau Querida, o Diário do Impeachment”, publicado pela Editora Matriz, no qual Eduardo Cunha, o autor, confirma que Dilma Rousseff foi vítima, sim, de um golpe de Estado, que destruiu a democracia e vem destruindo a economia brasileira. Afirma, também, que sem a militância ativa de Michel Temer, vice de Dilma, não teria havido o golpe.
O golpe contou com o apoio do mercado e de vários setores da sociedade. Isso não significa dizer que todos eles se reuniram e deliberaram o golpe, mas que, a partir de uma inciativa, no caso a revelada por Eduardo Cunha, outros setores foram se agregado, mobilizando-se e dandosuporte ideológico, político e material. Aproveitando as dificuldades enfrentadas por Dilma e pelo PT para conterem as consequências das crises econômicas, em âmbitos mundial e nacional, que afetavam o país,somando-se à falta de governabilidade, do crescimento do desemprego e da volta da pobreza, os setores do mercado passaram, por meio de seus agentes, a efetivar uma campanha de massa para manufaturação e sedimentar um sentimento de ódio ao PT, identificando o partido e suas lideranças como as causas e origens de toda a corrupção vivida pelo país. Dessa forma, prepararam o clima para um golpe que ocorreu com ares de normalidade institucional e disfarçado de processo constitucional de impeachment.
A participação ativa e decisiva de Michel Temer (PMDB), o vice de Dilma, explica, em parte, por que o golpe foi tramando, por meio do formato de impeachment, o “Projeto Ponte para o Futuro”, com aval do mercado, foi gestado pela Fundação Ulysses Guimarães ligada ao PMDB. O golpe foi disfarçado de impeachment para garantir Temer assumir a presidência e implantar o projeto, bem como continuar com foro privilegiado contra as denúncias de corrupção que contra ele corriamnajustiça. A primeira versão do “Projeto Ponte para o Futuro” foi apresentada pelo PMDB à Dilma como uma contribuição para o seu novo mandato (2015 a 2018) logo após os resultados das eleições presidenciais. Ela, então,aderiu a parte do projeto e, antes mesmo da sua posse, numa sinalização para agradar aos mercados, indicou Joaquim Levy, técnico ligado ao capital financeiro, para ser o seu novo ministro da Fazenda. Já a versão final apresentada, de forma constrangedora, para Dilma, àimprensa por Temer, no dia 29 e outubro de 2015.
Substituindo Dilma, Temer indicou Henrique Meireles para conduzir o projeto do mercado, o mesmo que vem sendo executado por Paulo Guedes no governo Bolsonaro. Michel Temer aprovou a reforma trabalhista e não conseguiu aprovar a reforma da previdência porque as denúncias de corrupções praticadas por Temer vieram a público, com robustas provas, mas o governo foi blindado,pois as reformas necessárias para a valorização do capital e a acumulação de riquezas por parte do mesmo não podiam sofrer adiamento.
No dia 6 de fevereiro, segundo informação que circulou em vários periódicos no Brasil, sobre o conteúdo do livro “General Eduardo Villas Bôas: conversa com o comandante”, do pesquisador Celso Castro, publicado pela Editora FGV, na qual o ex-comandante do Exército afirma que planejou junto com o alto comando da força fazer pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) para que o mesmo prejudicasse Lula, impedindo-o de ser candidato à presidência da República nas eleições de 2018, pressãomaterializada por meio do tuíte do general enviado aosmembros do STF. O texto foi interpretado como uma ameaça de golpe. Portanto, fica claro que, se Lula não tivesse tido seus direitos negados pelo STF, teríamos tido um segundo golpe, agora, sem disfarce de impeachment, um golpe militar. O General Eduardo Villas Bôas é um dos principais apoiadores e influenciadores de Bolsonaro. Este, em seu discurso de posse, diante do público, dirigiu-se ao general e declarou: “o que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
A CRISE DE HEGEMONIA E AS ELEIÇÕES DE 2018
Com o golpe contra o governo Dilma, com a prisão de Lula e o fracasso total do governo de Temer, criou-se uma crise de hegemonia no país, que se reflete na falta de uma nova direção política e moral, cujo corolário é a falta de um projeto econômico-político-cultural para o país. Foinesse cenário de crise de hegemonia que aconteceram as eleições presidenciais de 2018, com a participação de um conjunto amplo de candidatos inexpressivos, sem projetos para o Brasil e ancorados no apoio à Operação Lava Jato.
O Brasil vivia desde o final do governo Itamar Franconuma disputa pela formação de um novo bloco histórico de poder, processo alimentado pela polarização política entre o PSDB, fundado para ser a representação da socialdemocracia no país, e o PT, como partido que teve origem no movimento sindical e nos movimentos sociais do campo e da cidade. Nesse período, o PSDB ganhou duas eleições seguidas, com FHC, e o PT quatro, duas com Lula e duas com Dilma. Todavia, nunca conseguiram formar um novo bloco histórico porque nenhum dos partidos conseguiu a maioria no Congresso Nacional, necessitando, assim, do PMDB e do centrão como aliadospara garantir apoio ao governo, característica que marca o modelo político brasileiro, denominado por Sérgio Abranches de presidencialismo de Coalizão. Um modelo que implica a presença constante de clientelismo, corrupção e judicialização da política.
Nas eleições presidenciais de 2018, o mercado não tinha um projeto político para o país, sua proposta era resolver a crise do neoliberalismo com mais neoliberalismo,assim cada setor agia em função de seus interesses imediatos. Como não houve unificação em torno um nome para a disputa presidencial, os partidos saíram divididos nas eleições. O candidato do PSDB era o que tinha a simpatia da maior parte dos setores do mercado. Todavia, nenhum dos candidatos com ligação com o mercado conseguiu ir para o segundo turno. Assim, para evitar a volta do PT ao governo, agora com Fernando Haddad, houve o apoio à extrema direita protofascista, que chegou ao segundo turno com Bolsonaro.
O PT, mesmo diante de todo o desgaste sofrido, saiu-se muito bem nas eleições de 2018, chegou ao segundo turno e foi bastante competitivo. Em alguns momentos da campanha parecia ameaçar a liderança de Bolsonaro, fez a maior bancada de deputados federais, continua sendo a maior força política organizada do país e possui a maior participação de intelectuais com capacidade de formulação política e pensamento crítico. Todavia, a campanha de execração pública e a disseminação de um sentimento de ódio contra o partido foi demasiadamente forte e vai demorar a ser superada. O projeto neodesenvolvimentista já havia se esgotado no final do primeiro mandato de Dilma, e o partido segue sem projeto, pois vive do imaginário dos seus êxitos durante o governo Lula, uma vez que o governo Dilma não tinha muito o que apresentar em termos de conquistas.
Se o golpe no governo Dilma, em 2016, produziu uma crise de hegemonia no país, as eleições presidenciais de 2018 interromperam a disputa pela formação de um novo bloco histórico no poder entre PSDB e PT. Já ochamado centro-direita, que aglutinava o PSDB, o velho PMDB, o DEM e alguns partidos menores que saíram derrotados e uma nova polarização política foi formada. Nessa nova polarização, a extrema direita neoliberal protofascista passou a ter a inciativa política, tendo comooponente o PT, que segue a reboque da agenda do governo Bolsonaro.
O nova cenário de polarização política, numa sociedade de formação e cultura autoritária (escravocrata, patriarcal, homofóbica, racista, machista, que enxerga os pobres como corpo a ser explorado ou perigoso e marginal), permitirá que a extrema direita possa ter vida longa, pois o seu discurso moralista, conservador, autoritário e negacionista encontra ecos no imaginário e no modo de vida de uma parte significativa da sociedade brasileira. Não podemos ignorar que Bolsonaro, durante toda a campanha, sempre esteve em primeiro lugar nas intenções de votos aferidas pelas pesquisas de opinião e vem conseguindo se manter no governo, mesmo diante do desastre de sua política econômica e da suas omissões e posturas genocidas diante da pandemia.
Jair Bolsonaro foi subestimado por muitos analistas políticos, grupo este que me incluo, pelo próprio PT e pelos candidatos do mercado. Bolsonaro é um indivíduo sem nenhuma capacidade organizativa, com um poder de comunicação sôfrego e articulação mental medíocre, um ogro, mas tem uma capacidade intuitiva muito aguçada e uma atitude bélica ativa que não admite recuo ou sentimento de fraqueza. No seu comportamento político ele incorpora a política como uma relação entre inimigos, os quais devem ser eliminados, e o decisionismo (político, jurídico e moral) de Carl Schmitt. Para Schmitt, os seres humanos estão permanentemente envolvidos em diversas formas de conflitos, mas eles só assumem uma natureza política quando na relação amigo/inimigo os indivíduos envolvidos assumem a disposição de eliminar fisicamente o inimigo. O decisionismo significa a negação dos valores políticos liberais e a recusa de busca do consenso e do compromisso entre grupos por meio do discurso racional no espaço público. O decisionismo é um negacionismo.
Em sua campanha, Bolsonaro jogou com um discurso antissistêmico, apresentou-se como único candidato comprometido com o combate à corrupção e antipetista, foi ao segundo turno quase sem fazer campanha, recusou-se a participar de debates e se envolveu no caso polêmico da facada, que, além de colocá-lo numa situação de vítima e perseguido, criou a justificativa para a sua ausência na campanha.
AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2020
Nas eleições municipais de 2020, o PT seguiu em leve declínio, a esquerda se fortaleceu por meio do PSOL, e o centro esboçou uma recuperação, mas que não se configurou em um capital político capaz projetar um nome e de formular um projeto competitivo para eleições presidenciais de 2022. O mercado, que depois das eleições municipais foi pragmático, passou a blindar Bolsonaro em troca da aprovação da agenda de reformas encaminhadas por Paulo Guedes ao Congresso Nacional, uma agenda em inclui as reformas fiscal, administrativa, um conjunto de privatizações e a não criação de imposto que incida sobre o setor produtivo ou sobre grandes fortunas. Nesse movimento, já obteve a aprovação da independência do Banco Central e a aprovação do auxílio emergencial sem a criação de imposto sobre o setor produtivo ou sobre grandes fortunas, mas por meio de prejuízos para políticas sociais, principalmente de saúde, educação e os salários dos servidores públicos.
Quando falamos em mercado, é preciso ficar claro que ele não é um bloco homogêneo, que nem sempre atua em conjunto. Por exemplo, alguns de seus setores vêmsinalizando com rejeição as propostas autoritárias de Bolsonaro, que se materializam em ataques permanentes às instituições democráticas, como o fechamento do Congresso e do STF, de parte da chamada pauta de costumes e de sua irresponsabilidade e descaso no tratamento da pandemia da Covid-19. Esses setores podem se movimentar para a articulação de uma candidatura apresentada como fora dos extremos, nem governo e nem a volta do PT. A carta dos economistas e banqueiros pedido maior empenho no combate a pandemia pode ser uma sinalização de um final de namoro.
Uma das coisas que podemos aprender com a recente história política do capitalismo brasileiro é que, para os setores do mercado, como os que apoiaram o golpe contra a Dilma e a violação do Estado de direito, para prender Lula e evitar que ele fosse candidato, a sua relação com a democracia é utilitária, não é um princípio. Quando a democracia serve para manter a ordem, que permite as formas de dominação e exploração, ela é defendida. Todavia, quando serve para limitar as ambições do mercado e ampliar direitos dos trabalhadores e dasociedade em geral, ela pode ser violada em nome de universais abstratos, como interesses da nação, da moralidade e de desenvolvimento para todos.
No início de 2020, quando as posturas de cunhogenocida, adotadas diante da pandemia de Covid-19 no país por Bolsonaro, geravam um profundo desgaste do governo e a ideia de impeachment passou a ser sussurrada,o presidente articulou uma aliança com o centrão para garantir no comando da Câmara do Deputados e do Senado lideranças de sua confiança, impedindo que fosse pautada a sua cassação, e honrando o seu compromisso com a agenda de interesses do mercado. A operação foi bem-sucedida, e foi uma lástima que, nesse processo, o PT tenha se conduzido de forma a impedir uma candidatura de posição de esquerda ou não ter apoiado a candidatura do PSOL. Assim, foi vergonhosamente derrotado na disputa pela presidência na Câmara dos Deputados e, o mais vergonhoso, apoiou o candidato de Bolsonaro para a presidência do Senado. Bolsonaro parecia ter se fortalecido e garantido o controle da situação, mesmo que,para alguns, havia uma possibilidade de ele ter se tornando refém do centrão de ter aberto uma relação clientelista das mais danosas para o país e entrando em contradição com o seu discurso de campanha.
A VOLTA DE LULA AO CENÁRIO POLÍTICO
A prisão de Lula contribuiu para clivagem e polarização do país. As opiniões populares sobre a política se expressam por meio de afetos negativos que não contribuem para um diálogo positivo entre as diferenças políticas e sobre os novos rumos para o país. Essa situação, que foi alimentada por setores do mercado, parece não ser mais interessante aos seus interesses, pois, ao ir se configurando o aprofundamento da crise econômica, provocada pelas medidas adotadas pelo governo Bolsonaro, que se soma ao desgaste da imagem do presidente gerada pela forma como ele se comporta frente à crise da pandemia da Covid-19, podendo ocorrer a configuração de uma conjuntura favorável a candidaturas comprometidas com uma agenda de distribuição de renda, de ampliação de direitos e de imposição de impostos sobre grandes fortunas como forma de combater as desigualdades sociais, com a promessa de rever os casos de privatizações e de reformas, como a trabalhista e previdenciária.
A esquerda precisa ter coragem de apresentar e defender uma agenda de compromissos com a valorização do nosso patrimônio natural que implique o fechamento das porteiras e revisão de medidas tomadas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em atendendo aos interesses de mineradoras, madeireiros, grileiros de terras, fazendeiros e a rede de capital extrativista; de desmilitarização das polícias estaduais; que discuta a situação da população carcerária e a violação de seus direitos; projetos de apoio às atividades econômicas das populações camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pescadores artesanais e povos das florestas; a priorização de políticas públicas voltadas para as demandas dos movimentos sociais e grupos indenitários; reforma da política e do poder judiciário; uma política nacional de cultura; uma agenda de direitos humanos focada no enfrentamento à violência policial, ao feminicídio, no combate ao racismo, à homofobia, àtransfobia e na garantia aos direitos e reconhecimento da população LGBT+. Uma agenda que pode se fortalecer por um conjunto de partidos, entre eles o PSOL, PC do B e o PT, intelectuais e movimentos sociais diversos.
A recuperação dos direitos políticos de Lula gerou uma verdadeira ebulição no jogo político, o cenário passou a ficar mais dinâmico e imprevisível. Seu discurso como candidato, no dia 10 de março, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo dos Campos, acabou contribuindo para embolar o movimento deformação de uma candidatura de centro, dando nova dinâmica para a campanha de 2022, que já havia sido antecipada em quatro anos por Bolsonaro, o único candidato em campanha até o momento. A fala de Lularecolocou o PT e o campo da chamada esquerda em umoutro patamar da disputa, pois Bolsonaro deixa de falar apenas para seu grupo de apoiadores, tendo, agora, um interlocutor que não pode ignorar e tem uma crise econômica que vem levando o país ao caos e uma política genocida pela qual pode vir a ser responsabilizado.
Ao se dirigir à sociedade brasileira, no dia dez de março, Lula focou parte da sua fala sobre o tripé que compõe a tragédia brasileira: uma crise econômica aprofundada por meio de medidas desastrosas e lesivas ao país, tomadas por Paulo Guedes; uma política genocida como modelo de manejo da pandemia da Covid-19; e umativismo pautado por meio de uma visão obscurantista que faz apologia ao negacionismo, ao terraplanismo e ao autoritarismo. Lula não falou do golpe sofrido pelo governo de Dilma Rousseff, colocou-se como estadista e se posicionou contra as privatizações e a favor da ampliação dos gastos públicos com políticas sociais e com medidas para geração de emprego e renda. Foi avaliado positivamente por boa parte da opinião pública e deixou desnorteado alguns dos setores mais autoritários, principalmente militares.
A candidatura de Lula deixa claro que o PT volta a se colocar como centro hegemônico e aglutinador das esquerdas, e Lula vai tentar ampliar seu apoio para sua candidatura com o PSOL, PC do B, PCB, PSB e em parte de setores do mercado. Já Ciro Gomes, que vinha se movimentado como candidato, mas centrado seu discurso contra o PT e afirmando que um dos seus objetivos era isolar e derrotar o partido, vai enfrentar muitas dificuldades para encontrar espaço nesse novo cenário. A imagem que faço de Ciro Gomes, depois do retorno de Lula à disputa política, de forma não esperada, nem mesmo pelo PT, é a de um sujeito que acabou de levar uma baita tapa no “pé do ouvido” e entrou em movimento circular, roda que nem uma carrapeta louca, mas que quando entrar em repouso vai balançar a cabeça e se perguntar: o que aconteceu? Onde é que estou? Com certeza Ciro deve se reposicionar. Todavia, o que ele vai fazer nesse cenário, não é possível prever.
A possível entrada de Lula na disputa política eleitoral não pode, ainda, ser tomada como definitiva, não se pode entender, numa visão ligeira de quem estava desesperado, que estando o governo Bolsonaro enfrentando desgastes, isso possa significar que seja fácil derrotá-lo. É preciso considerar que na nova polarização em torno da formação de um novo bloco histórico no país, a extrema direita protofascista tem sido bem mais competente do que a militância de esquerda no uso das mídias sociais, que ela é organizada, que disputa a opinião pública, que faz ocupação das ruas defendendo intervenção militar, fechamento do Congresso, coloca-secontra a adoção de lockdown por parte de prefeitos e governadores, assinam manifesto público em grandes jornais de circulação, como os médicos em apoio ao presidente e suas medidas, que contam com o apoio das associações estaduais de polícias militares, de sindicatos de médicos, associação de advogados que perseguem quem critica o governo, de parte do poder judiciário, das associações e clube militares, das legiões de evangélicos neopentecostais, dos católicos fundamentalistas e de meios de comunicação.
Na sociedade brasileira, a extrema direita protofascista que chegou ao poder vem construindo uma hegemonia sob parte da sociedade, vem difundido para parte do corpo social a sua visão de mundo e de sociedade e sua mensagem vem sendo aceita e mobilizando esse corpo político na disputa contra seus inimigos. A partir de uma rede de Think Tanks, eles vêm fazendo formação de lideranças jovens e difundido um projeto neoliberal para o país. Por meio da teologia da prosperidade, as igrejas protestantes neopentecostais vêm alimentando a chamada agenda de costumes, que no governo Bolsonaro está representada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
No momento em que o mundo enfrenta a pandemia, as pessoas que têm um pensamento crítico e de esquerdase submetem ao isolamento social como ação mais adequada para o enfrentamento da Covid-19. Isso as imobiliza politicamente, enquanto a extrema direita protofascista não se sente intimidada em ocupar as ruas, pois é uma ação que não entra em contradição com suas crenças. Promover aglomeração, para a extrema direita protofascista, está em perfeita coerência com seus princípios e ideias. Portanto, não será a partir apenas da justeza do julgamento moral da esquerda que a extrema direita será derrotada, o fim da passividade e das formas antigas de fazer política e a luta ativa são componentes necessários para o enfrentamento dessa luta.
Além disso, uma desejada derrota do Bolsonaro não será o fim da extrema direita no país, ela está organizada na sociedade, no parlamento e suas mensagens têm apelo em parte significativa da população. Portanto, o grande desafio de esquerda, mais do que depositar todas as suas esperanças em um homem, é o de organizar a sociedade, pensar uma nova direção política e moral para o país, o que implica pensar um novo projeto econômico, pois o neodesenvolvimentismo/lulismo se esgotou, serve como ponto de partida porque está impregnado no imaginário de parte da esquerda, mas é insuficiente. É por meio da direção política e moral que se faz a disputa de hegemonia, que se consolida um bloco histórico de poder, mas o que mantém um bloco político coeso é a sua visão de mundo e de sociedade. O Brasil é complexo e complicado.
O aparecimento de uma candidatura de centro-direita(João Doria, Ciro Gomes ou Luiz Mandetta) com capacidade de disputa seria importante, pois poderia contribuir para a derrota da extrema direita neoliberal protofascista no país, aglutinando em torno de si eleitores que não querem nem Bolsonaro e nem Lula. Nesse sentido, uma pesquisa realizada pela Revista Exame, nos dias 10 e 11 de março de 2021, com uma pergunta que induz os participantes a se manifestarem por uma terceira alternativa, perguntava: “em relação à seguinte frase: eu gostaria que o próximo presidente não fosse nem o Lula, nem o Bolsonaro, você…” As respostas foram que 38% concordam; 33% discordam; 24% nem concordam nem discordam; 6% não sabem.
Entre os 38% que concordam, é porque identificam Lula com os escândalos de corrupção e Bolsonaro como irresponsável e incompetente diante da pandemia da Covid-19. Entre eles, muitos já votaram tanto em Lula como em Bolsonaro. Assim, uma eventual terceira candidatura competitiva para se confrontar com Bolsonaro terá que criticar Lula. Nesse sentido, a crítica mais fácilque já está inserida no imaginário popular é identificar o PT com corrupção, mas baterá mais em Bolsonaro do queno Lula se ele se mantiver em segundo lugar. Todavia, a presença de três forças em disputa pode ajudar na quebrarda polarização com o enfraquecimento da extrema direita neoliberal protofascista. Que cenário se configurará para as eleições de 2022? Quem serão realmente os candidatos em disputa? Essas respostas não podemos ter certeza nesse momento.
O Brasil é complexo e complicado, pois quando fazemos um baculejo e expiamos os mugangos da conjuntura nacional ficamos perplexos. Afinal, qual deveria ser o comportamento das instituições de um país democrático e de uma população cidadã, em que um personagem que teve uma participação importante na vida política, em prisão domiciliar, declarasse, por meio deentrevista e publicação de livro, que participou da organização de um golpe contra a presidente, legitimamente eleita em seu país, causando a destruição dademocracia e grandes perdas econômicas ao país?
O que aconteceria em país democrático, se diante da decisão de um ministro do STF em anular a condenação de um ex-presidente por falta de competência dos julgadores para condená-lo, um general da reserva, em artigo publicado em uma revista de um clube militar, afirmasse que tal atitude vinda do STF implicaria uma aproximação do ponto de ruptura, como fez o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva? Os mugangos na política são dinâmicos, os tempos são sombrios e todo baculejo político tem que ser realizado com muita cautela, paciência histórica e muito matutado.