UÉ, CADÊ OS OUTROS?

Quando acompanhamos a cena política brasileira, impossível não pensar em João Guimarães Rosa com sua maravilhosa epopeia mística, sociológica e psicológica, da travessia na terra, no grande ser-tão, cavalgando pelas veredas entre deus e o diabo, no meio do redemoinho da luta entre homens dos avessos. Afinal, viver é negócio muito perigoso. Solto, não tem diabo nenhum; vige dentro do homem. Mas quem deu a licença para o demo campear pelo mundo?”, indaga Riobaldo.

Ou como no caso de Kafka e o processo no qual é envolvido, conduzido coercitivamente. Enfim, quem nunca se viu pego de surpresa, por uma liderança religiosa intransigente, ou por um juiz gatuno e espião, dizendo que teríamos ferido leis divinas, ou cometido crimes, divulgados amplamente pelos meios de comunicação social, sem que nos fossem apresentados os fatos concretos e justos, por meio de uma investigação isenta e decente, contemplado nosso amplo direito de defesa? Quantas fogueiras, quantas guilhotinas, quantas prisões injustas.

Segundo o pensador israelense de filosofia política Avishai Margalit (in A SOCIEDADE DECENTE), a decência obriga em garantir a construção de sociedades baseadas na eliminação de qualquer forma de humilhação institucional, praticada contra os seus cidadãos, configurando-se como um dos fundamentos de uma sociedade justa, baseada na dignidade da pessoa humana.

A decência é o oposto da violação sistemática dos direitos do homem por intermédio de condutas lesivas e degradantes, colocando-o numa condição de vulnerabilidade existencial, por meio de humilhações, visando exclui-lo e retirá-lo de suas principais qualidades, como a liberdade, a dignidade e o respeito público.

Sociedades podem ser civilizadas sem necessariamente serem decentes. A distinção entre ambas recai no fato de que em sociedades decentes as instituições não humilham as pessoas, enquanto que em sociedades civilizadas seus membros que compõem o corpo social abstêm-se de praticar humilhações recíprocas. Humilhações institucionais são todas as ações cometidas por seus agentes, tais como funcionários públicos, policiais, carcereiros, professores, juízes, procuradores, em suma, qualquer agente detentor de autoridade que, em decorrência de suas prerrogativas, venha a impor condutas humilhantes às pessoas que estão sob sua esfera de atuação.

Na última quinta-feira, 22/04, o Supremo Tribunal Federal (STF), confirmou a decisão soberana da Segunda Turma ao decretar a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro (codinome Russo no submundo da internet), já declarado incompetente em julgamento anterior, na condução do processo contra o Presidente Lula, pelos motivos expostos por sua defesa técnica, amplamente divulgados ao longo dos cinco anos a que Lula esteve sendo vítima de humilhação pública por um processo persecutório contra a sua pessoa, tendo inclusive amargurado 588 dias de prisão ilegal e ilegítima nas dependências da Polícia Federal de Curitiba.

Ocorre que a sentença condenatória, exarada pelo incompetente e suspeito juiz Russo, foi confirmada pelos três desembargadores do TRF-4 – JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, LEANDRO PAULSEN e VICTOR DOS SANTOS LAUS – que de forma inédita, em uníssono, ampliaram por unanimidade a pena de prisão do Presidente Lula para 12 anos e 1 mês.

Registre-se que a malevolência da inédita decisão unânime dos três votos dos desembargadores diminuiu drasticamente a possibilidade de recursos por parte da Defesa de Lula. Uma humilhação imposta ao paciente de forma orquestrada. Consequentemente, também aqui recai a urgente necessidade de verificação e declaração por parte do STF da suspeição deste julgamento e de seus julgadores.

Além disso, em 08 de julho de 2018, o desembargador do TRF-4, Rogério Favreto, deferiu liminar determinando a soltura do Presidente Lula, decisão proferida em Habeas Corpus. Mas, orientado pelo presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores, o ex-juiz Moro expediu um despacho descumprindo a ordem de soltura do Presidente Lula. Como este foi mais um dos fatos que corroboraram para a decretação de suspeição de Russo, há que se condenar também o desembargador presidente do TRF-4 partícipe e garantidor de mais essa ilegalidade e humilhação.

Intrigante, não obstante toda a clareza, substância e objetividade dos fatos fundamentadores da suspeição, apenas 07 (sete) dos ministros da Suprema Corte votaram decididamente a seu favor. Dois deles, a saber, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, votaram contra a suspeição de Russo. Restam ainda dois juízes a votar: Marco Aurélio e Luís Fux. Também aqui não há como não exercer recordações. Neste caso, as mensagens pelo telegram do procurador Deltan Dallagnol (aquele do powerpoint) para o seu grupo de comandados: “Aha, uhu, o Fachin é nosso. In Fux we trust. Barroso vale mais do que 100 PGRs”. Como disse o gênio Guimarães Rosa, “o demo está misturado em tudo”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .