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Tudo na vida tem um começo

Tudo na vida tem um começo. O primeiro dia de aula, o primeiro dia do ano, o encontro inicial de duas pessoas, a primeira palavra deste texto. Imagens e palavras compõem a vida de qualquer ser humano, mesmo no silêncio, na tela branca, ou na raridade do tempo que destinamos para nossos nadas. Nas horas entregues ao sono, palavras e imagens formam uma teia estranha e deslocada, dando vazão aos enigmas do inconsciente. Ao longo da trajetória humana, de começo em começo, palavras e imagens dão forma ao denso tecido de uma história viva, composto por camadas de fios entrelaçados, emaranhados ou rompidos. A trama oriunda do encontro destes fios carregados de energia pode ser elaborada e resignificada. Quando uma pessoa maneja este processo de uma maneira muito própria, expondo o resultado desta elaboração e os outros reconhecem nisso um valor, essa pessoa frequentemente é chamada artista.

Na dinâmica frenética de nosso tempo, vir a propor um lugar de reflexão a partir de um tear de palavras e imagens é, no mínimo, um desafio. Talvez seja uma ousadia, um risco, ou até uma ingênua pretensão. Nossa época preza pela união de imagens a textos ligeiros, que rapidamente são tragados pela voracidade de um espaço virtual inquieto, permeado por um desamparo humano avassalador. “Somos instantâneos”, disse Paul Valéry. É um tempo de profusão de fala e de muita fala perdida, pois perdidos estamos na tagarelice do mundo. Por outro lado, sem o tempo da pausa para reflexão, palavras e imagens perdem a potência e o sentido. Boiam pelas cascas das coisas sem conseguir estabelecer raízes ou conexões mais profundas, e morrem por inanição.

Defendo que a arte está na argumentação das possibilidades de resistência à imposição do efêmero. Greenblatt sentencia: “a arte sempre penetra pelas frestas particulares da vida psíquica de cada um”. E, com ela, a atividade filosófica, o saber psicanalítico. Em nosso tear esses fios estarão entrelaçados na medida do possível, intensos na busca da poesia dos começos, no ativar de um olhar aguçado na identificação das referências utilizadas pelos artistas nas construções de suas obras. Afinal, esta é a busca pelos fios ocultos que já mencionei e que sustentam a trama do tecido que percebemos. Ninguém cria do nada. Toda criação humana precisa de referências para a sustentação do caminho e obtenção do resultado. E, na compreensão do tear de palavras e imagens do outro, podemos encontrar muito de nós mesmos, de nossos próprios fios desconhecidos.

Kasimir-Malevith-Quadrado-branco-sobre-fundo-branco-1918

Kasimir-Malevith-Quadrado-branco-sobre-fundo-branco-1918

Começo com uma tela branca. “Quadrado branco sobre fundo branco” de Kazimir Malevith costuma causar inquietação no espectador. Qual o sentido de uma obra que apresenta sobreposições de branco? O artista integrou o movimento suprematista, de cunho abstracionista em contraponto à arte figurativa. Reelaborando a trajetória de muitos começos, Malevith atravessou camadas e camadas de composições da imagem e levou a abstração geométrica à sua possibilidade mais simples: ao branco, ao início das coisas, ao aparente nada carregado de força. Na contemporaneidade, estamos entregues ao bombardeio de imagens e somos invadidos pela multiplicidade de palavras que nos atravessam. Evocar o branco sobre branco é efetivar o convite para uma parada contemplativa e, pela exibição da ausência, devolver o sentido às coisas afetadas pela saturação.

Branco sobre branco. A partir dele, desse quase nada, aproximar-se das coisas mesmas, no sentido fenomenológico de Merleau-Ponty. Buscar a força das palavras escondidas no silêncio e a potência das imagens presentes e não percebidas pela cegueira de nossos excessos visuais. Como disse Caeiro, é uma aprendizagem de desaprender. É o caminho para reencontrar a poesia de todo começo.

Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

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Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

2 comentários

  1. Maria Tereza Portela

    Em meio ao caos um novo começo: branco sobre branco, um retorno às coisas mesmas. Fez lembrar Benjamin, quando diz que o tempo de contemplação deve ser lento para captar aquilo que é manifestado. Excelente texto! Ótima reflexa!

  2. keila Targino

    Que bela reflexão! Nos dias de hoje, como voce mesmo diz, parar para refletir é um desafio!
    Parabéns pelo texto!!!!