Triste Brasil, por Alder Teixeira

Não me recordo o ano com exatidão, mas mantenho acesas as lembranças.
Membro fundador e primeiro presidente da União Iguatuense de Universitários (Unidus), participei do movimento que levou a Iguatu, para o que deveria ser um show memorável, Miúcha e João do Vale. Digo o que “deveria” porque, sob algum aspecto, o evento foi um fiasco: excedendo-se na bebida, o autor de Carcará sequer conseguia ficar em pé durante o espetáculo, cantando a maior parte do tempo sentado à beira do palco. Um vexame.
Desapontada, sem todavia perder a elegância jamais, Miúcha aceita o convite para um jantar num restaurante afastado da cidade, o BNB Clube, revelando-se, para além da extraordinária intérprete do cancioneiro popular brasileiro, uma conversadeira encantadora, dessas que costumam levar o interlocutor a querer varar a madrugada. E foi o que aconteceu.
Vinha dela a iniciativa de contar “causos” nos quais estivera envolvida em tempos inesquecíveis da MPB, em nenhum momento insinuando-se incomodada com a curiosidade dos presentes. Antes pelo contrário: contava-os com entusiasmo, como se, ao invés de a anônimos, dirigisse a conversa impagável a velhos amigos.
Ao final de cada história, os dentes chamativamente alvos à mostra, abria-se em gargalhadas sonoras e contagiantes. Uma noite inesquecível ao lado da melhor intérprete de Maninha: “Se lembra da fogueira / se lembra dos balões / se lembra dos luares do sertão”.
“O Vinicius [de Moraes], que frequentava a nossa casa no Pacaembu, sempre dizia que o Chico [Buarque] era um mentiroso, pois nunca houvera jaqueira no quintal”, dizia-nos, referindo-se ao verso “se lembra da jaqueira”, da referida canção, um dos seus maiores sucessos, talvez só superado por Samba do Avião, de Antônio Carlos Jobim.
Morta nessa quinta-feira 27, aos 81 anos, Miúcha deixa inconsolável uma legião de fãs. Com uma voz “pequena” para os padrões da maioria das cantoras mais prestigiadas de sua geração (início dos anos 70), Heloísa Buarque de Holanda notabilizou-se como uma intérprete insuperável, compensando com uma fina identificação com aquilo que cantava, seus limites vocais: “Minha alma canta / Vejo o Rio de Janeiro / Estou morrendo de saudade / Rio teu mar, praias sem fim / Rio você foi feito pra mim”.
Filha do historiador Sérgio Buarque de Holanda, e irmã de Chico, Cristina e Ana Buarque de Holanda, também cantoras, Miúcha foi casada com João Gilberto e é mãe de Bebel Gilberto, com quem dividiria, ao lado do então marido, um dos momentos áureos de sua carreira, o belíssimo álbum com o saxofonista americano de jazz Stan Getz (1927-1991). Para não falar de Rosa amarela (1997), Miúcha canta Vinicius & Vinicius (2003) e Outros sonhos (2007). No desfecho de um ano profundamente conturbado, o Brasil perde uma grande intérprete e uma pessoa humana luminosa.
***
Assim, eis que termina 2018. Um ano marcado por grandes contradições, algumas das quais repercutem mundo afora de modo a depor contra o Brasil e colocar por terra a imagem do país como uma democracia sólida. Muitas de nossas principais conquistas no terreno dos direitos humanos tombam ao peso do retrocesso que já é uma realidade. Sob a égide da hipocrisia e da desfaçatez, assumirá os destinos da nação a partir de primeiro de janeiro o novo presidente, as mãos indisfarçavelmente sujas pela prática da corrupção que prometeu combater. O pior tipo de autoritarismo, o autoritarismo legitimado pelas urnas, ocupando as páginas dos principais jornais. Triste Brasil.

Livre de vírus. www.avast.com.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica