Trechos do diário iniciado em 18 de março de 2020

Alguém deve ter nos caluniado a todos. Pois, certa manhã, sem que tivéssemos feito nada, pelo menos nada que restasse na lembrança e na consciência, fomos todos presos. Era em nossas próprias casas, para os de nós que tinham ao menos isso, e as chaves não nos foram tomadas, mas a rigor estávamos impedidos de sair, proibidos, nos sentíamos. (19/03/2020)

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Amanhã todos podemos morrer. Ou pode ser até hoje, sei lá. “O senhor está morto. Enterramos amanhã. Vida que segue.” Até a semana passada, a morte como horizonte de sentido, ou falta dele, era tão leve e sábia quanto toda a velha e boa filosofia de bar. A lembrança da morte, e que a morte é coisa inevitável, agora é ofensa pessoal. Mas isso ainda diz pouco. Pode ser amanhã. (22/03)

 

Que é preciso ao menos ter piedade do nosso sentimento de raiva. Dizem que devemos ser bonzinhos uns com os outros, e foram bem incisivos quando disseram isso antes das instruções de nos confinarmos. Disseram que era por amor. Nem todo mundo entendeu que era pra nossa segurança: há dentre nós os que acham que estão nos enganando e os que acham que é tudo exagero. Não é. Colocar o amor como regra é que foi exagero, engano e eventualmente mentira, mas antes de mais nada falta de diplomacia. Disseram que era feio ter raiva. E o que foi que a gente fez com a coitada da raiva, que não tinha culpa de nada? Coitada: sua única sorte é que não era coisa que se pudesse agarrar com a mão nem coisa viva que se doesse ou gente, que é coisa viva que se dói e sabe de si. A gente queria era que a raiva tivesse um rosto e que fosse alguém, pois aí a raiva ia ter o que merece: a gente ia cuspir na cara da raiva e lhe dizer nomes, a gente ia bater nela e chamar todo mundo pra bater também, e de tanta revolta acho que a gente queria até morder os lábios da raiva, daí tantos dentes rangendo e tanta mandíbula humana dolorida. Sentir raiva nos disseram que era uma coisa feia, e a gente quer evitar as coisas feias. E nos confinaram, a nós, que não sabemos conviver. Também porque não deixam a gente aprender, e que melhor oportunidade? (28/03)

 

2h18. Os tiros devem ser na outra margem da lagoa. Só os cachorros se incomodaram de verdade. Nonada. Os cachorros mesmo é estranho que se assustem. As dívidas de honra e as disputas por território não podiam ficar paradas por muito tempo, e não faria mesmo sentido que um sujeito que enfrenta tiroteios tivesse medo de febre, coriza e falta de ar, quando ainda há tanto inimigo visível. Nada pessoal: é simplesmente dinheiro, nonada, não carece explicação: os tiros eram apenas os homens, rotina, resolvendo seus negócios. Os cachorros, precipitados, se assustam à toa, e o presidente, quem diria, parece que tem razão: os negócios não podem mesmo parar. Depois se vai ver se deu mortos. (31/03)

 

  

  

 

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.