A ficção literária constitui indubitavelmente dos mais importantes mecanismos de reflexão sobre a vida política latino-americana. O romance sobre o “ditador”, por exemplo, é uma constante, com verdadeiras obras-primas, produzidas em países das Américas do Sul, Central e Caribenha.
O peruano Mario Vargas LLosa, que já trouxe à luz há alguns anos o romance “A festa do Bode”, publicou recentemente “Tiempos recios” (numa tradução livre, tempos difíceis ou duros), obra que tem como como pano de fundo os sucessos nos anos 50 do século passado na Guatemala, ocasionadores da derrubada do presidente Jacobo Árbenz, eleito democraticamente, e a derrocada de um experimento social-democrata.
O marketing político nos Estados Unidos, envolvendo políticos, congressistas, jornalistas, proporcionou a narrativa exitosa de que reformas políticas, sociais e econômicas do presidente Árbenz significavam, no fundo, a tentativa de a União Soviética estabelecer uma cabeça-de-ponte no continente centro-americano. Na verdade, o que estava em jogo mesmo eram os interesses da United Fruit Inc., da qual o poeta Pablo Neruda, no seu “Canto Geral”, dizia que, quando soou a trombeta e Jeová repartiu o mundo entre a Coca-Cola, a Anaconda, a Ford Motors e outras entidades, a Compañia Frutera “se reservou o mais cobiçado, […] a doce cintura da América”, batizando de novo as suas terras, agora como “Repúblicas Bananas”. E, ainda com Neruda, distribuiu “coroas de César”, atraindo a “ditadura das moscas”, moscas Trujillo (República Dominicana), moscas Tachos (Nicarágua), moscas Carías (Honduras), moscas Martínez (El Salvador), moscas Ubico (Guatemala), todas “úmidas de sangue humilde e marmelada”. De fato, a América Central e o Caribe foram terreno fértil para a proliferação daquilo que a literatura especializada chama de “ditaduras sultanísticas”, para caracterizar a apropriação privada do espaço público sem maiores intermediações institucionais. Ao fim e ao cabo, ali vicejaram ditadores que, como observou Gabriel García Márquez, ou morriam de velhice em sua cama, ou eram assassinados, ou fugiam dos seus países, porém, nunca eram julgados.
Com “Tiempos recios”, Llosa dá continuidade à temática da ditadura na da América Central e no Caribe, que já fora objeto de um outro romance seu, “A festa do Bode”, situado na República Dominicana, no contexto histórico da ditadura sultanística da “mosca Trujillo” ou o “Bode”, como era apelidado Rafael Trujillo, um militar inexpressivo que, imposto pelos “marines” norte-americanos em 1930, só caiu, assassinado, cerca de trinta depois.
Evidentemente, ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio, todavia, o passado pesa sobre o presente. Agora mesmo, o noticiário dá conta de que o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, um populista por demais autoritário, e que governa por tuítes e promove constante tensão contra os poderes do Estado e as manifestações da imprensa, invadiu a Assembleia Legislativa, acompanhado de um grupo de soldados, sentou-se na cadeira presidencial e ordenou o início da sessão, invocando um direito divino de que se considera investido. Ontem e hoje, entre ditadores e autoritários latino-americanos, os da “doce cintura da América” e das suas ilhas, foram, além da violência levada ao extremo, com assassinatos, tortura, corrupção e brutalidades mais nos campos econômico e social, proporcionaram um folclore inolvidável. O médico Duvalier, o “Papa Doc”, no Haiti mandou exterminar todos os cachorros pretos do país, porque, acreditava ele, um seu inimigo político, para não ser assassinado, havia se transformado em um cachorro preto. Já o teósofo Maximiliano Hernández Martínez, de El Salvador, inventou um pêndulo que, antes de comer, colocava sobre os alimentos, para detectar se estavam ou não envenenados.
“Tempos recios”, a par de “A festa do Bode” vem, pois, adicionar-se à já longa lista de romances sobre autoritarismos e autoritários, repondo a tragicomédia de ditadores, cada um com o seu delírio, a unir autores tão distintos como, além do própria Llosa, Alejo Capertiner (Cuba), Augusto Roa Bastos (Paraguai), Arturo Uslar Pietri (Venezuela), Gabriel García Márquez (Colômbia) e Miguel Ángel Asturias (Guatemala).
Por fim, não custa perguntar: quando se escreverá o romance sobre o ditador brasileiro?