Tá lá mais um corpo estendido no chão

Hoje a cidade está mais fúnebre. Foi executado, com um tiro na cabeça, disparado covardemente por um fuzil de um agente de segurança do estado do Rio de Janeiro, o menino Eduardo de Jesus, com apenas 10 anos de idade. Aqui em Fortaleza, no dia 25 de julho de 2010, também foi assassinado pelas costas o adolescente Bruce Cristian, de 14 anos de idade, que estava na garupa da moto do seu pai, por uma bala disparada por um jovem policial do grupamento Ronda do Quarteirão: o projétil penetrou a nuca do adolescente indefeso, saindo pelo olho esquerdo, causando-lhe morte imediata. São diversos os relatos da violência policial diária contra cidadãos e cidadãs brasileiros.

Aprendemos com Maiakoviski em um belo poema que “na primeira noite eles se aproximam, recolhem uma flor do nosso jardim, e não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso animal de estimação e não dizemos nada. Até que um dia, o mais fraco deles, entra em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos nada dizer”.

Michel Foucault, em seus estudos sobre o biopoder, apresenta vários elementos importantes para nossa reflexão neste momento em que são assassinados nossos adolescentes e crianças. Na sua obra Em Defesa da Sociedade, ele trata da temática do nascimento do racismo de Estado, na tentativa de situar a questão da violência não apenas do ponto de vista de um racismo étnico, mas de um racismo tipo evolucionista ou mesmo, acrescentaríamos, um racismo social que presenciamos na contemporaneidade.

Primeiramente o racismo vai se desenvolver com a colonização europeia nas terras descobertas da África e da América que acarretou um genocídio colonizador: o extermínio das populações indígenas juntamente com o sistema escravista de povos africanos são exemplos históricos da violência de que foi capaz a colonização branca europeia. A ideologia racista foi o meio de introduzir o domínio da vida, “o poder de definir o que deve viver e o que deve morrer”, uma maneira de distinguir no interior da população uns grupos em relação a outros. E para Foucault, essa é a primeira função do racismo: fragmentar, de estabelecer o poder de a elite censurar as minorias. A segunda consequência funesta é a ideologia de perseguição até a morte de membros integrantes dessas minorias: quanto mais indivíduos dessas minorias forem eliminados, mais os membros das elites terão condição de viver ainda melhor. A morte desses oprimidos é a garantia da segurança daqueles detentores do poder. É justamente a ideologia do racismo, segundo Foucault, que inspira o pensamento sobre a criminalidade para tornar possível à condenação à morte de um criminoso ou o seu isolamento.

Numa sociedade escravista como foi a nossa brasileira, que até bem pouco tempo atrás negros e índios não eram considerados como humanos, essa herança cultural continua perpassando não apenas corações e mentes de indivíduos e grupos, como também de instituições e estruturas de poder local e nacional. Espinosa nos lembra que indignar-se é demonstrar concretamente o total repúdio a alguém que comete um mal a um nosso semelhante. Consequentemente, a indignação implica uma ação coletiva, puxada por lideranças da sociedade civil organizada, que seja capaz de corrigir o mal em sua raiz, construindo um novo ambiente que seja propício e esteja comprometido com a prática do bem para com a coletividade. O sangue esparramado pelo chão de mais uma criança brasileira covardemente assassinada por um agente do Estado impõe uma tomada de posição de nossas lideranças políticas, religiosas, empresariais, civis. E somente uma articulação coletiva é capaz de transformar o estado de coisas pela via de uma ampla mobilização política, para acabar de vez com a herança maldita. Caso contrário será tarde demais, como tão bem profetizou o poeta russo.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .