Sobre grafia e despudor

Apropriando-se indecorosamente das celebrações do bicentenário da Independência, transformando-as no mais desfigurado, vil e desavergonhado espetáculo oficial do país, sob o olhar cúmplice de representantes das Forças Armadas, assumidamente usados como figurantes de quinta no palco da encenação burlesca, o presidente Bolsonaro abusou da baixaria e ensejou — com seu discurso entremeado de ameaças à democracia, afirmações de masculinidade e alusão descabida aos dotes físicos da primeira-dama —, uma discussão de natureza gramatical no mínimo curiosa: “imbrochável”, com CH, ou “imbroxável”, com X?

Muito embora adotado por redatores dos principais jornais do país, a exemplo do que se pode observar na edição de hoje da Folha de S. Paulo, onde aparece em chamadas da capa e artigos vários, a primeira grafia me parece desaconselhável. Tomo por base o que registra o “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: “broxar. v.t.d. 1. Pincelar, pintar com broxa. Int. 2. Bras. Chulo. Perder, ocasional ou definitivamente, a potência sexual: tornar-se broxa. (2). [Pres. subj. Broxe etc. Cf. broche, sub. masc., e o verbo brochar”.

No “Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa”, comentado, crítico e enciclopédico trabalho encabeçado pelo professor Luiz Antonio Sacconi, depara-se com o seguinte verbete sobre o verbo ‘broxar’: “broxar v.t.d. 1. Pintar ou pincelar com broxa: broxar a parede. 2. Chulo. Fazer perder a potência sexual: um pensamento ruim, de repente, broxou-o. // v.i. 3. Chulo. Perder a potência sexual, não conseguindo manter o coito: de repente, broxou e não houve mais jeito. 4. Pop. Desanimar; perder o interesse: desta vez ele broxou de vez: não quer saber de mais nada.

O notável “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, assinado pelo filólogo de estirpe Antônio Geraldo da Cunha, a exemplo de inúmeros outros dicionários de estudiosos de extração clássica, não registra o verbo em qualquer das grafias. Muitos o fazem, como é o caso de Geraldo da Cunha, em relação ao substantivo de que, provavelmente, deriva o adjetivo utilizado à farta nas principais publicações de hoje: “brocha. sf. ‘ant. fecho de metal’ XIV; ‘prego curto de cabeça larga e chata., etc. Para ele, “brochar” significa, como aparece no verbete, pregar com brocha, pequeno prego, ou, ainda, pintar com brocha, tipo de pincel, sem nenhuma referência ao termo chulo de que se originaria o adjetivo alardeado pelo presidente em plena festa cívica levianamente transformada em comício de campanha.

Já entre dicionários mais ‘modernos’ (não vai aqui qualquer juízo de valoração), a grafia com CH é defendida. É como aparece, por exemplo, no “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, renomada publicação do Instituto Antônio Houaiss. Nele, entre os muitos significados, depara-se no verbete “brochar” com a seguinte definição: […] 14. int. B tab. perder temporária ou definitivamente a capacidade de ter uma ereção”.

Dentre esses, no entanto, como no caso do “Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa”, na bem cuidada edição da editora Melhoramentos, depara-se com o verbete “broxar”: v.t.d. broxar. 1. Pintar ou untar com broxa. v.t.d. 2. Pincelar. vint. 3. ch. Mostrar-se incapaz de realizar o ato sexual.

Para o bem ou para o mal (é inacreditável, mesmo vindo de quem vem), a chula, despropositada e machista fala do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, autoelogiando-se como “imbroxável”, em plena solenidade cujo objetivo era festejar o bicentenário da Independência, o neologismo constitui uma derivação regressiva do verbo “broxar”, e sua grafia não sugere qualquer relação com “brochar”, com CH.

Nada relevante, contudo, o uso de uma ou outra grafia em face do que entrou para a História do Brasil como um vergonhoso ato de desrespeito à Constituição e de provocação aos filhos do bem desta Pátria Amada a que se destina, imprecisa e vacilante, a afirmação de 200 anos de Independência. Oportuno lembras, por último, as palavras implacáveis de Simone de Beauvoir sobre o assunto: “Ninguém é mais arrogante, violento, agressivo e desdenhoso contra as mulheres, que um homem inseguro de sua própria virilidade”.

Viremos a página. Eis que se aproxima o dia da verdadeira libertação.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica