Sobre a gratuidade

No livro dos Atos dos Apóstolos encontra-se um trecho interessante para nossa reflexão diante dos últimos acontecimentos relativos à condenação apriorística de todos os envolvidos – médicos, juízes, advogados, corpo administrativo do hospital, entre outrospor parte de algumas autoridades governamentais, eclesiásticas e fiéis fundamentalistas, na solução do trauma da menina de 10 anos de idade, vítima de tortura psicológica e violência sexual, submetida desde os seus seis anos de idade, resultando numa gravidez por estupro, somente reconhecida por ela pessoalmente em função de fortes dores abdominais reclamadas.(https://segundaopiniao.jor.br/quem-e-mais-importante-a-pessoa-ou-a-norma/).

No referido texto neotestamentário, uma parcela de cristãos, chamados “judaizantes”, alegava que se alguém era “pagão”, primeiramente tinha que se tornar judeu, diga-se, um bom judeu, para somente depois pensar em tornar-se cristão e enfim poder estar na linha dos eleitos do povo de Deus. Todavia, estes cristãos oriundos do paganismo colocavam a questão: “Seremos nós cristãos de segunda classe? A ressurreição de Cristo não dissolveu a Lei antiga? Afinal, nós estamos felizes por havermos recebido o Espírito Santo”.

Os judaizantes, baseados em argumentos morais e teológicos, afirmavam que os ex-pagãos deveriam ser submetidos a este procedimento por eles estabelecido.Eram metódicos e rígidos em seu pensar. Por estarem presos aos costumes antigos, não conseguiam alcançar a gratuidade da ressurreição de Jesus nem tampouco a liberdade de ação do Espírito, que sopra onde e quando quer.

Ou seja, o texto revela a tentativa de reducionismo da novidade cristã a dogmas ou a ideologias. Esses líderes judaizantes montavam um modelo de religião com prescrições rígidas a serem seguidas rigorosamente pelos fiéis, manipulando seus corações e mentes, retirando-lhes sua liberdade de “espaços existenciais do Espírito”. Ocorre que esta rigidez institucional não foi um fato isolado, repetiu-se por várias vezes ao longo da história do cristianismo.

Em sua homilia do dia 15 de maio de 2020, na celebração matutina transmitida ao vivo da Capela da Casa Santa Marta, Papa Francisco esclarece que “o relacionamento com Deus é gratuito, é uma relação de amizade”. O Papa afirma que “onde há rigidez, não há Espírito de Deus, porque o Espírito de Deus é liberdade. E essas pessoas (judaizantes) queriam dar passos tirando a liberdade do Espírito de Deus e a gratuidade da redenção. A morte e ressureição de Jesus são gratuitas. Não se pagam, não se compram: são dom para todos!”.

Francisco acentua que no nosso tempo presente viram-se algumas organizações apostólicas que aparentavam realmente ser bem constituídas, funcionando a bom termo. Mas eram todas rígidas. Todas iguais umas a outras. Depois, ficou-se sabendo da corrupção que havia dentro delas, até nos próprios Fundadores.

O espírito da rigidez leva-nos sempre à perturbação. Da perturbação ao escrúpulo. Do escrúpulo à manipulaçãoinfundindo o temor e a insegurança. Por sua vez, afirma o Papa, o espírito da liberdade evangélica leva-nos à alegria, porque foi justamente isso que Jesus fez com sua ressurreição: trouxe a alegria! Uma relação com Deus não é uma relação empresarial, de troca instrumental, de fazer coisas: eu faço isso, tu me dás aquilo. Por isso, é importante discernir – tema sempre presente no pensamento de Francisco – entre os frutos da gratuidade e os frutos da rigidez. A vida da fé não pode ser submetida a prescrições casuísticas sem sentido, a uma rigidez que nos retira a liberdade.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .