Sertão, escola da vida, por Francisco Luciano Moreira Gonçalves (Xykolu)

Há pouco mais de quatro décadas, resido na Região Metropolitana de Fortaleza – cinco anos em Caucaia, a antiga Soure, e os demais na “loira desposada do sol”, berço de José de Alencar, o genial escultor da jovem índia tabajara, “a virgem dos lábios de mel”, personagem central de Iracema, sua consagrada prosa-poética.

O tempo e as vivências não modificaram muito o meu espírito de sertanejo empedernido, de homem calejado do interior, de eterno aprendiz dos ensinamentos da vida no campo. Não raras vezes, ajo como um matuto, o que, na essência, sou. Permaneço, espiritualmente, na simplicidade do sertão, embora de citadinas nascença, infância, puberdade e adolescência, sempre bafejado pelo clima de pé-de-serra, até a primeira fase da maturidade, homem feito.

Mandacaru do asfalto, jucazeiro em moradias gradeadas, ainda consigo reter na memória, antes tão pródiga e hoje não mais, algumas das boas lições do vô Francisco, ambientadas na telúrica escola mazaganense ou mazaganista*.

Manhã de domingo.

Camisa de mangas compridas e calça de mescla, de tecido recentemente comprado na cidade. Cafezinho caseiro, passado na cara do freguês, já bebido com acompanhamento de um generoso naco de cuscuz fumegante, macerado com nata caseira. Espreguiçadeira no alpendre, parte frontal da casa de tijolos e telhas de barro e piso morto (ou contrapiso). Baforadas de cachimbo lançadas ao vento. Mágoas doídas e remoídas. Planos para o inverno que, se Deus quiser – e certamente quererá – em boa hora virá.

Cadela caçadora faz que dorme ao lado. Papagaio falador – desavergonhado e mentiroso – em poleiro de flandres fixado na parede, à esquerda da porta de entrada. À direita, mais no canto, uma grossa corda com laço na ponta balança ao vento, amarrada em caibro com a serventia de dependurar a “criação” – bode, cabra, carneiro, ovelha – abatida e pronta para a retirada do couro e das vísceras.

Ali, no aconchego de si mesmo, no mundinho todo seu, “cabra macho” por excelência, olhar perdido na imensidão do sertão – o destino certo de seus mais humanos devotamentos e devaneios e esperanças –, vasto e profundo conhecimento de mundo ali mesmo adquirido, visíveis marcas da inexorabilidade do tempo e da crucial luta pela sobrevivência – rosto enrugado, pele queimada, mãos calejadas –, chapéu de palha encobrindo quase totalmente a cabeleira de uma brancura tal que mais parece algodão e chinelos de couro protegendo os pés de quantas léguas percorridas, o velho e destemido sertanejo parece filosofar em silêncio, enquanto recompõe energias e vontades para mais uma jornada que a vida o imporá. É a vida em essência. Que seja!

Um cavaleiro conhecido, parceiro de renhidas batalhas pela vida, também exímio no uso da enxada, da foice e do machado, da espingarda socadeira (caça) e da tarrafa, landuá ou anzol (pesca), desbravador de matas virgens e cuidador de gado magro, estanca sua montaria à margem da calçada de pedras. Cumprimenta-o:

– Bom dia, cumpade! Como vai a cumade?

Saindo daquele momento de quase-êxtase, ele responde:

– Bom dia, cumpade! Bons ventos le tragam! Sua cumade vai bem… ao menos num tem reclamado… muito. E a minha cumade, cuma‘stá?

– Vai levando a vidinha, cumpade… vai levando, como Deus qué.

– Apriceio qui vosmicê num ‘stá cum pressa. Apeisse, pois, home de Deus. Venha tomá um cafezinho comigo.

Nesta situação, o convite é positivo. O café é algo possível. Certamente, o bule de ágata ainda descansa, cheio do precioso líquido, numa das laterais do fogão a lenha… lenha que arde sob panelas de barro em que se prepara o almoço de logo mais, à base de feijão e arroz. Com algum adjutório, certamente.

E os compadres esticam, o quanto podem, a conversa descontraída, sobre tudo e mais alguma coisa, em meio ao saborear gostoso de um café quentinho, cujo cheiro açula o olfato de muita gente. Em seguida, as baforadas de cachimbo ou as pitadas de cigarro de “papelim”, ambos com fumo de rolo cortado e recortado sob o gume afiado de uma faca peixeira que já integra a indumentária clássica do homem do sertão.

Mas há uma outra maneira de o convite ser formulado. Espie bem, amável leitor(a):

– Se num m’ingano, cumpade, pressinto qui vosmicê ‘stá cum pressa. Num quero atrapaiá seus prano. Mas, num vai querê tomá um cafezinho, não?!

Neste caso, o convite é negativo – enfaticamente negativo – e é provável que não haja café coisíssima alguma. O interlocutor entende o real sentido da mensagem e se desculpa:

– Pois é, cumpade. Tô mei’aperriado, mermo. Nada grave. Prumeto a vosmicê tomá esse café nôtro dia. Dê minhas lembrança à cumade. Inté logo!

– Inté! Qui Deus le acumpanhe, cumpade!

– Qui ele fique cum vosmicê, cumpade!

E, quando o parceiro e montaria desaparecem na primeira curva da secular estradinha, o velho e destemido sertanejo retorna ao aconchego de si mesmo. Aparenta dormir de olhos abertos. A alma adejando em outros tempos, em outras plagas. Alhures!

E o eterno aprendiz das coisas do sertão conclui satisfeito: lição aprendida.

PS.: * Habitantes da localidade denominada Mazagão (palavra originária do árabe, significa “água quente”), às margens de rio do mesmo nome, no município de Capistrano. Há também uma cidade amapaense com igual nome.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

1 comentário

  1. Francisco Luciano Gonçalves Moreira

    Mazaganense. Adj. 2 g.. 1. De, ou pertencente ou relativo a Mazagão (AP). S. 2 g. 2. Natural ou habitante de Mazagão. [Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Editora Nova Fronteira].