Será que os clássicos da literatura são exclusivos para as elites e incompreensíveis para as massas contemporâneas que crescem com horizontes culturais tão diferentes? Exigir ou sugerir a leitura dos clássicos é um truque das classes dominantes – brancas, burguesas, masculinas – para impor a sua visão do mundo aos outros? Frequentemente, encontramos estes questionamentos. Por exemplo, Marisa Lajolo aponta essas formulações como sendo “brancas, quase sempre originadas no primeiro mundo, muitas vezes com bigode” …
Porém, nada é tão certo. É verdade que existe um uso “classista” da literatura que serve ou serviu para marcar a superioridade de uma classe, o seu “capital cultural” (conceito central de Pierre Bourdieu), como ornamento de um capital econômico e prova do seu “mérito”. O século XIX foi um bom exemplo disso, na Europa, de burgueses que, nos seus salões esperavam uma oportunidade para “repetir as citações” em latim – de autores latinos que aprendiam de cor para poder expor em momento ideal. Quer ler passagens engraçadas sobre isso? Basta ter em mãos a obra de Balzac Ilusões Perdidas. Curiosamente, estes burgueses raramente compreendiam os escritos dos “autores-fetiches” que eles recitavam como quem reza um rosário.
A realidade é que ao longo dos séculos – de intensa produção literária – procurou-se identificar, através de alguns critérios, questões acerca da literatura e do texto literário – o tipo de linguagem empregada, as intenções do escritor, o leitor, os temas, o modo de ler e a reflexão ou efeito produzido pela leitura.
Mesmo sabendo da existência de um uso “classista” da literatura, será que isto é permissão para se considerar os clássicos como expressões irremediavelmente viciadas de uma cultura opressiva e injusta? É claro que seria desejável um futuro onde a maioria dos escritores não fossem, necessariamente, composta apenas por “homem, branco, com diploma superior”, como afirma Regina Dalcastagnè.
No entanto, caro leitor, isto é razão para se recusar toda uma literatura feita até agora porque é a obra de homens brancos burgueses? É necessário recorrer ao rap nas aulas com o argumento de “única condição para conseguir ou manter a atenção dos estudantes”, ou utilizar simplesmente os romances escritos com SMS por jovens japonesas? Claro que se deve utilizar outras leituras, ainda mais se tratando de Brasil, um país tão diverso. Mas os clássicos são atemporais. Por que um jovem brasileiro, como citei no artigo anterior (Balzac e a liberdade nas montanhas chinesas) ou um morador de comunidades, “deveria interessar-se pelos costumes da Rússia do século XIX (mais ainda, por costumes aristocráticos) ou pela vida numa pequena cidade francesa no mesmo século ou como um inglês imaginava um amor proibido na Itália do século XIV?”. Ainda no mesmo artigo, lembro que “o belo dos verdadeiros clássicos é que falam de temáticas universais. Através do tempo e do lugar particulares, eles evocam algo que concerne a todos os humanos” …
Portanto, quando autores afirmam que poucos fazem uma boa leitura, não se trata de ser uma visão apocalíptica da literatura, a questão é que o abandono da grande literatura (por exemplo, nas escolas) não seria absolutamente antielitista, mas seria elitista: porque as elites continuariam a leitura literária, até mesmo formando um grupo limitado e exclusivo. Claramente, não se trata aqui de elites econômicas e políticas. A união entre elites culturais por um lado e elites econômicas por outro se quebrou em todos os lugares; hoje, os dirigentes e os poderosos do mundo são, com raras exceções, quase “analfabetos” e estão satisfeitos ou orgulhosos em mostrar o seu lado “popular”.
Mas, todas as outras pessoas, se não têm direito, se não têm acesso à literatura no ensino básico, correm o risco de serem excluídas para sempre da cultura crítica e diversa, para ficar, tão somente, com a diversão proposta pelos “mass media”. “Panem et Circenses”, tanto na Roma antiga quanto hoje.
Como sabemos, o desenvolvimento do processo de mercantilização da cultura, das técnicas de reprodução de imagens e de escrita generalizadas, ambas passaram a compor um aspecto fundamental do modo de ser da sociedade capitalista contemporânea, transformando-se em mercadorias, incentivando o consumo pela construção de desejos coisificados. A lógica da sociedade do espetáculo, como aponta Guy Debord, interfere na capacidade do homem de ver e interpretar criticamente o mundo, alienando-o da sociedade.
Tal lógica abarca tudo que se tem pela frente, seja o livro ou o modo de ler, comportamentos, modos de vestir e até o jeito de “amar”. Até mesmo a concessão de Prêmios na Literatura virou uma atitude mercadológica, fazendo com que muitos autores praticamente desconhecidos fossem traduzidos em muitas línguas. Uma lógica que faz com que um ou outro autor de “segunda ou terceira” categoria seja lido no Brasil, inclusive no Ceará, ou em qualquer lugar do mundo, ou quando uma editora transforma um desconhecido em bestseller sem ele nunca ter escrito um livro antes, quando temos autores de primeira linha, alguns jamais publicados. Ou ainda, casos de festas literárias, que a exemplo dos modelos de eventos semelhantes em outros países, copia no Brasil, transformando, em “tempos de rock, a literatura em fenômeno midiático”.
Uma lógica que vai reger o comportamento das pessoas, que tenderão a se comportar de acordo com os títulos apresentados em sedutoras capas ou levar como verdades os milagres descritos em seus títulos, que têm, em sua organização moderna, a mesma lógica dos meios de comunicação de massa, caracterizados por estratégias que constroem um “novo mundo” pautado no desejo de consumo, mesmo sendo a literatura muito mais do que simplesmente uma questão de sociedade de mercado e charme pessoal ou modelos de personalidades.
Mesmo na era da comunicação de massa, com o poder ideológico inseparável até mesmo da arte de ler/escrever/educar, ainda assim, o lugar do livro, da leitura, da educação literária devem conduzir à reflexão ao invés do lugar alienante do entretenimento.