SEM LENÇO, SEM MONUMENTO

Figura exponencial da cultura cearense, nasceu em 1880, em Messejana, com o agregado curioso – que ele sempre ressaltava – de ter sido a centésima e última criança a ser batizada na Paróquia Nossa Senhora da Conceição naquele ano.

Filho único de pai advogado e mãe professora, sua principal paixão quando criança era brincar por entre as goiabeiras, cajueiros e mangueiras presentes na ampla residência familiar, um sítio próximo a Matriz, local que a família, católica convicta, frequentava aos domingos e feriados santos. 

Alfabetizado pela mãe e munido de uma inteligência rápida e muita curiosidade diante das coisas do mundo, notabilizou-se desde sempre nos bancos escolares, sendo, durante toda a sua trajetória estudantil – inclusive no afamado Liceu de Fortaleza -, o primeiro aluno da turma, o que o fez tornar-se admirado por uns na mesma proporção em que era odiado por outros.

Já na adolescência teve despertada suas múltiplas vocações, com destaque para as do campo artístico, o que não satisfazia os desejos do pai, que queria um sucessor, não um “Zé Ninguém que só pinta e borda”, como costumava dizer.

Nessas circunstâncias e sob a pressão paterna, resolveu cursar a Faculdade de Direito do Recife, para onde se mudou. A trajetória acadêmica acabou por não ser das mais brilhantes; longe da vigilância familiar, foram muitos os excessos cometidos nas noites de bebedeira pelas velhas ruas da capital pernambucana, o que, mesmo assim, não o impediu de ser escolhido como orador oficial da turma.

Graduado, retornou a Fortaleza, ocupando lugar no escritório de advocacia do pai, que ficava nos arredores do centro histórico da cidade. A despeito da complexidade de sua atividade profissional, que lhe demandava muita concentração e tempo, tornou-se amigo e parceiro de algazarras dos vários artistas, intelectuais e boêmios que faziam da Praça do Ferreira o ponto mais efervescente da capital.

Por conta dessas amizades, e também por ser, além de advogado, um exímio desenhista e poeta parnasiano, foi membro fundador de vários clubes e agremiações artísticas da cidade, o que lhe conferia presença nos principais eventos culturais da capital, como foi no caso da solenidade de inauguração do Theatro José de Alencar (1910), que contou com um discurso seu.

Enveredando pelo jornalismo – passou a escrever regularmente para alguns periódicos locais -, teve atuação proeminente nos episódios que culminaram na queda da oligarquia de Nogueira Accioly, em 1912 – seu combate ao “Babaquara” (como Nogueira Acioly era chamado pelo povo), inclusive, acabou por ocasionar um certo distanciamento do seu pai, dado que este era amigo próximo e admirador do então presidente do Ceará.

A euforia que se seguiu a derrocada da oligarquia de Nogueira Accioly fez com que ele se engajasse ainda mais nas questões políticas, sem, contudo, abrir mão de suas ambições artísticas. E foi com esse duplo entusiasmo que, já sob os ares do governo reformista de Franco Rabelo – que havia sido nomeado interventor estadual pelo Presidente da República, Hermes da Fonseca -, ele propôs a criação de centros  integrados de cultura e arte em todos os municípios do interior do Ceará, sugestão essa que, segundo relatos, não foi levada a termo unicamente por conta dos acontecimentos que entraram para a história como a “Sedição de Juazeiro”, violento embate entre as forças estaduais e os comandados do Padre Cícero, cujo desenlace provocou a deposição de Franco Rabelo.

Desiludido com a realidade da política local e nacional, ele resolveu focar sua atenção apenas no exercício da advocacia e nas atividades artísticas, postura só quebrada quando da reforma feita pelo prefeito Godofredo Maciel na Praça do Ferreira (1920), que pôs abaixo os lendários quiosques dos cafés que ocupavam os quadrantes do logradouro, entre eles o Java, berço da Padaria Espiritual do seu amigo Antonio Sales; foram dele, naquela ocasião, as mais ferrenhas críticas ao prefeito, cujas ações julgava deletérias para com a memória da cidade.

Cinéfilo de primeira hora e apreciador cativo e radical dos filmes mudos, esteve presente na primeira exibição de um filme sonoro em Fortaleza, “Melodia da Broadway”, no Cine Moderno, em 1930. Relatos dão conta de que ele, ao término da concorrida sessão que anunciava a chegada de novos tempos na sétima arte, saiu sem dirigir palavra a quem quer que fosse, dada a sua contrariedade com a experiência que acabara de vivenciar; alguns dizem mesmo que aquela foi a última vez em que ele assistiu a uma sessão de cinema.

Sem constituir família, consolidou uma bem sucedida trajetória profissional ao tempo em que permaneceu intimamente ligado aos círculos artísticos e culturais da cidade por várias décadas, tendo recebido, por conta de suas contribuições – foi um dos principais entusiastas e defensores da ideia de criação de uma Secretaria da Cultura -, inúmeros convites para assumir posições de destaque no âmbito dos governos estaduais e municipais, pelo que sempre declinava, alegando que já tinha dado sua contribuição para o “caos universal”, pelo que restava apenas “diluir-se no vácuo”.

Reverenciado pelos seus contemporâneos, que viam nele, além de um grande profissional, alguém com excepcional talento criativo, nunca realizou exposição com seus desenhos ou publicou algum dos muitos livros de poesia ou prosa que escreveu; o incêndio que devastou o velho casarão onde vivia, ocorrido cerca de dois anos após a sua morte – aos 100 anos de idade -, tratou de ocultar para sempre o seu legado artístico.

Alguns poucos e longevos amigos, movidos pelo reconhecimento ao homem que ele fora e às contribuições que fizera ao longo de sua prolífica e atuante vida, ainda tentaram, após seu passamento, prestar-lhe  uma singela homenagem através da nomeação de alguma rua ou praça da cidade com o seu nome, sendo mesmo proposto um busto que lhe fizesse a honra permanente da memória; para desencanto desses parcos e fiéis escudeiros, nada foi encaminhado para além das promessas das autoridades consultadas, pelo que a sua importância e identidade seguem, até o momento, desconhecidas pelas novas gerações.

 

 

 

  

 

Sobre o autor:

Compartilhe este artigo:

SEM LENÇO, SEM MONUMENTO