Saudades da hipocrisia

A velha tradição de corrupção, associada ao patrimonialismo, que indiferencia a fazenda pública do patrimônio privado dos detentores do poder, sempre foi desmentida pelos seus agentes, que proferiam discursos hipócritas sobre virtudes cívicas. Pagavam, assim, tributo às virtudes. Por isso os aliados apanhados em flagrante eram abandonados, expulsos dos partidos. Hoje fazem-se manifestações de desagravo aos corruptos condenados pela justiça com base em dilúvios de provas.

A nova realidade é o cinismo. Fazem-se reuniões escancaradas entre investigados e autoridades que deverão e julgá-los. Fala-se abertamente em um acordão, viabilizando a ágil recondução do Procurador Geral da República, afastando o perigo de denúncia contra o Presidente do senado, o ex-presidente Lula e Dilma. A nota dissonante foi Marco Aurélio de Mello, recusando-se a participar de uma estranha confraternização, dizendo que o fazia em nome do povo brasileiro.

O Ministro Luís Barroso, comentando as condenações do mensalão, disse, em tom de crítica, que o episódio havia sido “um ponto fora da curva” (da impunidade). Sair de tal curva seria algo a ser criticado!

Seguindo o curso do dinheiro e negociando colaboração dos réus, da operação Lava Jato surgem toneladas de provas. Depósitos bancários milionários são comprovados. Pagamentos de serviços que não foram prestados e superfaturamento são identificados. Figuras do alto mundo político são identificadas atuando como “corretores” de negociatas.

No passado tivemos crises econômicas e políticas associadas. Mas havia no horizonte alguma solução. O impasse que se seguiu a renúncia do Jânio foi remediado com o parlamentarismo porque existiam líderes hábeis, apoiados em partidos cheios de imperfeições, mas que eram minimamente partidos. Fracassou porque na verdade era um “parlaprismo” (mistura de parlamentarismo com presidencialismo) e foi extinto pela ambição dos presidenciáveis. A crise de 84/5 foi resolvida com a eleição de Tancredo e posse do Sarney, graças a mediação de líderes com alguma credibilidade, embora já não tivéssemos partidos. A crise do governo Collor foi solucionada com o impeachment seguido de um governo de coalisão, com a contribuição de líderes de peso. Agora não se fala em parlamentarismo. Não se cogita de um governo de coalisão. Não temos partidos nem líderes respeitáveis e a crise econômica é mais complexa.

A semelhança da Caixa de Pandora, só nos resta uma virtude: as instituições jurídicas e políticas legadas pelos constituintes de 1988. Por isso temos um Ministério Público e um Judiciário independentes; e uma Polícia Federal atuante. Por isso temos a operação Lava Jato, a penúltima esperança do Brasil. Mas o trabalho dos seus agentes depende do que poderá ser feito nas mais altas esferas da República. Contra uma pizza vinda das cúpulas só a última esperança: o povo brasileiro… se o gigante despertar. As ruas dizem que ele está se mexendo. Irá acordar?

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.