Esta não é somente uma entrevista cronológica sobre as experiências vividas. Mais do que isto, trata-se de um passeio pelo campo do desejo, do ficcionar-se, um lugar familiar para Ricardo Guilherme, artista e intelectual que precisa estar em três tempos ao mesmo tempo: passado, presente e futuro.
Na entrevista a seguir, com o professor universitário, diretor teatral, ator, dramaturgo, contista, cronista, poeta, radialista e jornalista que completa 50 anos de profissão em 2020, o que se vê é o co-autor do anteprojeto de criação da Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Ceará e criador do Teatro Radical se revelar um homem de energia contagiante, inteligência ímpar e uma gigante vontade de a tudo querer e tentar compreender.
HQ: Em que época você gostaria de ter vivido ou de viver?
RG: Talvez no momento da revolução estética, ruptura dos padrões de gênero da dramaturgia e da encenação, lá pelos anos 1920 no Brasil. Ou talvez mais exatamente em 1922, durante a Semana de Arte Moderna. Gostaria de estar naquele evento, digamos, histórico, inaugural, pois sou uma pessoa que prefere inaugurar, inventar instâncias de expressão. Se eu então estivesse em algum lugar seria por aquilo que aconteceu naquele lugar, mais pontualmente no campo das artes, da revolução das linguagens, mas não pelo contexto geral. Não me vejo com aquela moral ou com aquela circunstância social das décadas iniciais do século XX. Eu me vejo mesmo é no hoje, com a capacidade de comunicação que a internet proporciona e com a possibilidade de conviver com a multiplicidade das diferenças. Acho tão enriquecedora essa experiência que a gente pode ter de romper as bolhas e exercitar a empatia, conhecer a diversidade, seja do ponto de vista da diversidade sexual, cultural, intelectual, para tentar sempre um exercício de alteridade.
HQ: Qual a palavra que você gosta e uma palavra que você não gosta?
RG: Dialogicidade, dialogar. Mas penso que diálogo não constitui só uma conversa, um simples bate-papo. Dialogar é a experiência de ser pautado pelo Outro, de entender o Outro, de acrescentar algo ao que o interlocutor está dizendo, absorver o que ele está dizendo para forjar o que se vai dizendo. No diálogo os interlocutores são alimentados pela energia que um dá ao outro e esta energia retroalimenta cada participante desse processo de interlocução. Então, uma palavra que resumiria a minha tentativa de ser no mundo seria esta: dialogicidade. Outra palavra definidora seria invenção ou inventividade. Eu gosto de inventar, instalar ou instaurar o que não foi ainda criado, ir além do que já está posto. As pessoas que admiro são geralmente os inventores, como o Zamenhof (Ludwik Lejzer Zamenhof) que é o fundador do Esperanto. Criar um idioma. Imagine. Que coisa fascinante! Ou então criar uma cidade, a capital de um país, como fez Juscelino Kubitschek com a arquitetura de Niemeyer e o urbanismo de Lúcio Costa. As pessoas que são inventoras me fascinam porque acreditam na utopia e se lançam para construir, viabilizar a utopia. Quanto à palavra com a qual eu não me identifico, talvez seja a que significa o contrário de invenção, de inovação, ou seja, a mesmice, a visão rasa das coisas, o não-vertical…
HQ: O não-transversal?
RG: Sim, porque eu admiro a transversalidade, a idéia de que o conhecimento não está em uma coisa, mas na transversalidade das coisas. É interessante ser e estar atravessado por multiplicidades e ter transdisciplinaridade. Eis aí uma outra palavra que me interessa: transdisciplinaridade.
HQ: Politicamente, quem é o Ricardo Guilherme?
RG: Eu sou de Esquerda, um defensor da liberdade de expressão, da democracia, das políticas públicas de inclusão social, um cara que entende a cultura como o alicerce de uma educação transformadora. E faço militância política no sentido amplo do termo, através da arte, com moções e emoções. Sempre buscando uma dimensão social daquilo que eu digo dentro e fora da cena. Procuro uma possibilidade de dar insights ao meu tempo, ao meu povo, ao meu lugar, para propiciar entendimentos de transformação político-social. Afinal, o artista tem que estar em três lugares ao mesmo tempo: atrás, ao lado e à frente do seu tempo. Estar atrás no sentido de saber quem é o seu povo, qual é a antropologia cultural do seu país, quais são as temporalidades e mentalidades em que fomos sociologicamente forjados. Estar ao lado no sentido de ser antenado e solidário com as demandas da contemporaneidade. E estar à frente no sentido de apontar caminhos, de propor questões ou impasses que a História no futuro terá que resolver. Então pra mim o artista tem de estar em um tempo-trio, perpassado por passado, presente e futuro, simultaneamente. É preciso ao artista conectar esses três tempos, estar nesses três tempos, ter, enfim, o dom da ubiqüidade. É como diz Ionesco (Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo): para o artista estar atualizado já é um atraso. Eu, por exemplo, tenho me empenhado a fazer uma dramaturgia-poeta, arbitrária, de invenção total, em que a criação artística não tenha de necessariamente se deixar reger pela noção de verossimilhança cultural, psicológica, de reprodução do real , e possa, à revelia desse modelo, ter uma arbitrariedade absoluta para criar personagens que nunca existiram e que nunca vão existir.
HQ: E do ponto de vista da religião, quem você é?
RG: Sou oriundo de uma cultura católica, mas não me considero um católico praticante que cumpre ritos, normas e dogmas. A mim interessa o estudo do ecumenismo, dos mitos e da mística de todas as religiões, inclusive as de matriz indígena e as afrobrasileiras.
HQ: O homem do teatro tem um filme favorito? Ou um livro que já leu várias vezes?
RG: Filmes eu poderia citar vários, mas o primeiro título que me ocorre agora e com que me identifico é o do brasileiro Marcelo Marzagão, “Nós que aqui estamos por vós esperamos” , um documentário sobre a experiência humana na história dos séculos. Mostra as pessoas que sonharam e que morreram, ao longo de várias gerações, sem a chance de realização desses seus sonhos.
HQ: E livro?
RG: Os Sertões, de Euclides da Cunha, O Povo Brasileiro, do Darcy Ribeiro, Dom Quixote, de Cervantes, a obra de Shakespeare, Molière, Freud, Jung, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Adélia Prado, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Moreira Campos, Raquel de Queirós, Jáder de Carvalho. E, enfim, tantos mais.
HQ: Que artista você ressuscitaria?
RG: Êh, eu ressuscitaria tanta gente, mas cito aqui agora somente alguns intérpretes de Teatro: a Dercy Gonçalves, a Cacilda Becker, a Glauce Rocha, o Clóvis Matias , o José Humberto Cavalcante, entre muitos outros.
HQ: O que te irrita?
RG: Aquele que não se dispõe a ouvir o outro, quem se impõe ao outro, a não-empatia, a ausência de alteridade e de inteligência emocional. Ah, isso me irrita e tem me impacientado porque eu acho uma falta de inteligência alguém se fechar em si mesmo e não lidar com a divergência de pensamento e de emoção. Ou então contestar o outro a priori, sem estar aberto à possibilidade do aprendizado que um eventual diálogo possa pelo menos ensejar. Mesmo para que haja discordância, divergência de opinião ou de análise sobre determinado tema, é preciso antes tentar compreender as motivações que originam os fenômenos, os acontecimentos.
HQ: E o que é que te acalma?
RG: Perceber que o desejo de alguém corresponde ao meu desejo e que, portanto, é possível realizá-lo. Feito aquela frase da música Luiza, do Tom Jobim : “o teu desejo é sempre o meu desejo”. Ou seja, estar em sintonia de desejos me dá uma sensação de plenitude.
HQ: Qual é a emoção que te domina?
RG: As emoções de Apolo e Dionisio. Às vezes me flagro impulsivo, sem as ponderações ante os primeiros impulsos. Eu que acho tão bonito ser ponderado, metódico, apolíneo, me permito às vezes ao perigo do improviso e me descubro como irremediavelmente dionisíaco.
HQ: Existem heróis? Quem você considera herói?
RG: Augusto Boal, o único teatrólogo brasileiro que está aí nos compêndios da história do teatro mundial por ter criado o Teatro do Oprimido, uma poética que em todos os continentes e para todos os contingentes democratizou mais e mais profundamente o Teatro como um produtor de saberes imbricado a uma militância política em prol dos direitos humanos.
HQ: A essa altura da vida, o que é a vida?
RG: É o que a gente vai inventando a partir daquilo que a gente não domina ou nunca domina de todo. A vida é o que, mesmo sem domínio, a gente vai propondo e, em processo que ora depende e ora independe de nós, vai se fazendo, vai se desfazendo e se refazendo. A vida, então, é fruto da dinâmica da vida e não algo pré-concebido, pre-conceituado. A vida é um ir vivendo, é um ir sabendo. A vida é gerúndio e nesse gerúndio a gente vai gerando sentidos.
HQ: Complete a frase: um dia eu ainda vou…
RG: …. ficar mais em paz comigo, para entender o meu lugar no mundo e a finitude desse lugar no mundo. Um dia ainda vou compatibilizar aquilo que eu acho que eu deveria ser com aquilo que eu acho que estou sendo e serei.
HQ: Quem você gostaria de ser?
RG: Eu queria ser uma pessoa melhor e maior do que eu mesmo pra me compreender totalmente e compreender totalmente todos. Eu queria não me deixar nunca abalar pelas coisas de ser, de ter, para poder transcender tudo.
HQ: O que é o dinheiro ou a tua relação com o dinheiro?
RG: Minha relação com o dinheiro é uma relação de desejo. Eu gostaria de ter muito mais para realizar muito mais. O dinheiro é pra mim a medida daquilo que o dinheiro pode produzir: a edição de meus livros, por exemplo, ou o apoio aos projetos que independem das minhas iniciativas, mas que me tocam porque são a meu ver relevantes para a sociedade.
HQ: Você tem muitos livros engavetados?
RG: Eu tenho alguns livros publicados. De teatro, poesia, contos, ensaios, artigos etc. Mas publiquei muito menos do que eu deveria. Ainda permanecem inéditos aproximadamente uns trinta livros, prontos para publicação. Em vários gêneros.
HQ: Se você tivesse o poder absoluto de mudar alguma coisa, qualquer coisa que você pudesse imaginar, o que você mudaria?
RG: Eu acho que a maior invenção do ser humano é a anestesia porque ela consegue conter a dor, mascarar a dor, vencer a dor física. Então, se eu pudesse, faria o que faz a anestesia, faria com que não houvesse a dor, retiraria do mundo a dor. Assim as pessoas poderiam viver e morrer sem ter que passar por processos dolorosos. Toda a gente desapareceria, de modo a não sofrer e a não fazer sofrer os que estivessem ao redor.
HQ: Você não perde uma oportunidade de quê?
RG: De encontrar um espaço, uma oportunidade para me expressar, tentando contribuir para a realização de alguma coisa socialmente, politicamente relevante, de forma a não me omitir e sempre opinar, buscar intervir com pensamento e/ou com outra espécie de ação prática de intervenção.
HQ: O que é a solidão? E o que é o silêncio?
RG: A solidão e o silêncio são instâncias propícias para o entendimento de que nós somos existencialmente, metafisicamente sozinhos, indivíduos indivisíveis. Apesar de nossas radicais e imprescindíveis tentativas de nos comunicar, é na solidão e em silêncio que compreendemos que a subjetividade e a intersubjetividade nos regem e que, portanto, as coisas não são como são; as coisas são como somos.
HQ: Isso é bom?
RG: É, no mínimo, complexo. Todos gostariam de ser divisíveis, compreendidos pelo Outro, mas a solidão nos ensina que, mediados pela intersubjetividade, o Outro nos diz muito sobre nós mesmos e que, portanto, nós nos constituímos também a partir do olhar do Outro sobre nós. Quanto ao silêncio, penso que ele é feito de palavras, forma um discurso e este discurso é muito livre quando estamos sozinhos. O silêncio nos diz coisas inimagináveis, às vezes dolorosas, coisas que seriam deselegantes aceitar e admitir diante do Outro, mas que admitir diante de nós mesmos não nos parecem ser tão reprováveis.
HQ: O que é o Brasil hoje?
RG: O Brasil hoje, pós-eleição presidencial de 2018, corre o risco de ser a negação da imagem a que esteve sempre associado: a de um país da diversidade, da vanguarda da diversidade, país do pluralismo, da multiplicidade de etnias, um país multicultural, diversificado e diverso, de múltiplas possibilidade de convivências.
HQ: O ser humano ainda vai…
RG: …perceber lá na frente que é parte da natureza, fruto da natureza. Apesar de todas as disposições em contrário, quero acreditar que o ser humano ainda vai se harmonizar com o meio-ambiente, compreendendo que só assim a espécie humana pode sobreviver.
HQ: Eu sou…
RG: Eu sou um ímpar, mas não no sentido de ser melhor do que todos. Não. Eu sou ímpar apenas porque não sou o Outro; eu sou somente e tão-somente eu mesmo. Eu sou esse ímpar que quer ser par, que quer partilhar, partilhar-se, compartilhar.
HQ: Uma mensagem aos seus contemporâneos. Que mensagem você deixaria para eles?
RG: Que cada um de nós possa inventar e reinventar a sua vida, compreendendo que cada ser humano é o que é a sua visão de mundo. Que a gente saiba sempre emprestar sentido à vida, nos entendendo como integrantes das tantas outras vidas, em convívio, sabendo viver convivendo.