“Muita coisa pode ser lembrada e aprendida ao se olhar para trás,
mas somente para uma visita, não para uma estada demorada”.
[William P. Young, em A cabana; pág. 129].
A orfandade precoce me impôs percorrer caminhos que, sob a incansável e criteriosa orientação materna, jamais teria sequer deles me aproximado.
Antecipei, inconscientemente, a aquisição de habilidades e competências que acabaram significando meios de sobrevivência no emaranhado confuso de vivências em que incorporei, ao sabor do tempo e das circunstâncias, um personagem burlesco, caricato e bizarro, para quem o destino reservou um protagonismo picaresco. Adolesci no dorso volúvel, instável e, portanto, de alto risco de um vendaval. Um redemoinho de multifacetadas emoções pôs-me de ponta-cabeça, fez-me sentir engulhos, virou-me ao avesso, expôs-me as vísceras. Adquiri vícios, alguns larguei-os à margem de minha tortuosa trajetória e outros serviram-me para cauterizar feridas, enrugar a epiderme [“Couro de homem é pra dar refugo”, alguém um dia sentenciou], aliviar pressões e tensões. Fui moleque, fiz molecagens… cheguei a ser um cão sem dono… desci ao limite do nada. A alma quase não suportou o tranco e ameaçou abandonar-me à beira do despenhadeiro. Arrependeu-se a tempo… apostou em mim… permaneceu comigo. Não mergulhei no carrancudo lago de águas turvas. Não sucumbi.
Aprendi com a vida. Mas a escola do mundo chega a ser perversa. Deixa no âmago, no mais profundo do ser, marcas profundas e indeléveis. Doloridas, amargas. Paga-se caro por tudo isso. Quitei a fatura como me foi cobrada, sem questionamentos e sem regateios. Graças à mão de ferro e ao caráter inabalável de um guardião resoluto que jamais fraquejou no difícil e árduo papel de pai; e à generosidade e disponibilidade, além do senso prático, de um anjo bom que se travestiu de mulher-mãe. E, quando o tempo se fez ameno, recuperei a integridade humana… virei gente novamente; mas, aí, já respondia às exigências da maturidade.
A memória pode até ser seletiva, mas o espírito não.
Hoje, lembrei-me de três saudáveis hábitos adquiridos em meio à tormenta daquela época de não sei quantos tons de cinza.
Um deles. Não sentir qualquer cerimônia ou constrangimento ao trocar o conforto deleitoso de uma cama bem arrumada, cheirosa e convidativa pelo acolhimento aprazível de uma rede de varandas – sinto-me, a bem da verdade, como se regressasse ao útero materno, ao aconchego afetuoso, ao acalanto confortável, que transmutam em prazer a necessidade do repouso.
Outro. Dormir razoavelmente cedo e acordar agradavelmente cedo. Não se trata de regra rígida, rigorosa. Mas sei muito bem quando me vem a hora do aninhamento; embala-me, então, a suave e doce melodia que emana da flauta de Hypnos. Também sei muito bem quando devo estar de pé, com coragem e fé. O mundo lá fora me espera, e a vida é um contínuo ininterrupto. Há que se achegar ao bonde do cotidiano. Há que se protagonizar a peculiar história de vida. Não se deve pôr a bunda na janela à espera de que alguém passe a mão nela. O que há de ser feito, faço-o.
O outro. Fazer a feira nas manhãs dos sábados. Foi sempre prazeroso, por demais da conta, passear entre as duas longas filas de barracas, irmanadas na mesma precariedade da estrutura em madeira e da fragilidade das cobertas de lona, cujos tabuleiros, apoiados em rústicos cavaletes de abrir-e-fechar, mostravam-se pródigos na oferta de bens de consumo para a satisfação das mais variadas necessidades. Do cheiro-verde – coentro e cebolinha – à lamparina ou ao pavio de algodão em trança. Do tamarindo ou jenipapo, da erva-cidreira, capim-santo ou boldo, à rapadura com ou sem coco, à galinha caipira, ao ovo de pata e à manteiga da terra. Ali, em se oferecendo, tudo se vendia. E o vozerio, a animação, o aparente caos. E as conversas, e os “causos”, e os negócios. Preço acordado, pagamento em dinheiro vivo, produto entregue na hora. E a gente se sentia gente. Simples, naquilo que revelava a mais natural simplicidade; importante, naquilo que projetava a reconhecida importância de quem vende, no ato de vender, e de quem compra, no ato de comprar. E o ponto de equilíbrio acontecia sem qualquer intervenção acadêmica.
Naquele sábado, experimentei os três hábitos. Dormi bem, acordei cedo e cheguei ao supermercado – varejista e atacadista – no espreguiçar-se da manhã. Pouca gente, movimento calmo. Rapidamente fiz minhas escolhas. Ao chegar ao setor de pesagem de frutas e verduras, ouvi uma boa conversa entre as duas atendentes:
– Hoje é o dia internacional do homem…
– Como assim?! Isso existe?
– Sim. Em março, temos o nosso dia e, em abril, o deles.
– Interessante. Eu nunca ouvi falar que…
– É o dia da mentira, colega. Entendeu?
Aproximei-me um pouco mais e fiz a pergunta que me veio de pronto:
– Com todo o respeito, amiga, e se eu lhe dissesse que você é uma jovem muito simpática, por acaso estaria mentindo?
– Doutor, aqui pra nós, os idosos não se incluem entre os homenageados…
– Faz-se preciso apresentar a carteirinha…?
– Não. Nada disso. Bastam as aparências…
– Que bom!
Passeei entre as gôndolas e conduzi o carrinho de compras para o setor de caixas. Nada de filas. Todas as jovens bem postadas em seus locais de trabalho, aguardando os fregueses. Escolhi uma delas aleatoriamente. Enquanto me atendia, a conversa fluiu naturalmente:
– Mulher, pois não é que o Elionardo…
– Quem?!
– O Elionardo, aquele bonitão do RH. Pois não é que ele me convidou para o lançamento do CD dele. Vai ser hoje à noite, lá no quiosque da pracinha do Álvaro Weyne…
– Mulher, vá não! Esse cara é um conversa mole. Esse CD dele já foi lançado tantas vezes que mais parece aquele bicho que a gente joga pra cima e ele volta e cai na cabeça da gente.
Eu intervim:
– Um bumerangue…
– Isso. Esse bicho aí.
– Mas amiga, as meninas disseram que lá é muito animado. Só aparece gente bonita, querendo se divertir…
– Até que o Nardinho começa a soltar a franga…
– O quê?! Aquele pedaço de mau caminho é balde, é?!
Concluído o pagamento, antes de ir-me embora, arrisquei mais uma intervençãozinha:
– Amigas, quando duas mulheres se encontram nas esquinas da vida e se dispõem a tricotear, coitado de quem lhes servir de assunto.
– Pois é, doutor. Aqui, “nóis” ganha pouco, mas se diverte…
Fui. Na saída, um funcionário vestido em fardamento azul, com uma identificação no bolso da camisa e às costas – Prevenção de Perdas – fez menção de me abordar, mas recuou. Lembrou-se, certamente, da advertência que eu já lhe houvera feito: é ilegal o ato de cotejar com o respetivo cupom fiscal os itens de compras dos fregueses, mormente quando se trata de varejista. Pode ser considerado constrangimento.
Encaminhei-me para o estacionamento. Acomodei tudo no porta-malas do carro. Aquela vontadezinha sentida há cerca de meia hora virou necessidade e agora revestiu-se de premência. O meu reino por um banheiro. Indicaram-me um, no outro lado do grande pátio. Quando menos esperei, estava me aliviando em um dos cubículos muito bem asseados. Sob um cartaz de alerta ao combate ao mosquitinho triviral, uma lista de observações. Não suba no vaso sanitário. Jogue o papel usado no cesto do lixo. Não jogue absorvente… “Êpa! Será que estou onde não devo?!”. Estava. Apressei-me no que fazia. Recompus-me. Quando me preparava para deixar o recinto, ouvi uma agoniada voz feminina:
– Guarda, tem um homem no sanitário das mulheres…
Passei por ela como um bólido.
– Desculpem-me! Eu acho que cometi um equívoco.
Segui célere em direção ao mercado. Senti que o olhar intimidador do guarda mantinha-se pousado sobre meus ombros. Fui.
No mercado, os primeiros cumprimentos do Manuel, o rosto esbranquiçado com vários pontos vermelhos nas maçãs, como se o sangue fosse jorrar a qualquer hora, os olhos verdes e um sorriso de vendedor nato. Ali me abasteço de banana, laranja e mamão, produtos de ótima qualidade, em quantidade que dá para o consumo da semana. Como sempre, ele narra as peripécias de um garanhão. Uma noite de aventuras. Contesto com frases de meu pai, para quem “O cabrito que é bom não berra”, e de meu avô, para quem “Muita farofa é sinal de pouca carne”. E arremato:
– Manuel, não quero saber disso… o que duas pessoas fazem entre quatro paredes só às duas interessa…
O moreno do feijão verde me recepciona com um comentário desalentador: “Com a proximidade da semana santa, os preços dispararam”. Eu o acalmo: “Para quem já sobreviveu até à inflação do chuchu, sobrepreço circunstancial não assusta”. O dono do box à frente me saúda com a modernidade: “Agora, o senhor pode pagar no cartão… de débito ou de crédito”. E levanta a maquininha para além das cabeças das pessoas, balançando-a festivamente. O jovem cadeirista anuncia aos gritos: “Mastruz com leite!” Sirvo-me de um copinho de café. Dou-lhe uma cédula de dois reais, e ele agradece. Alguém pede chá de boldo. Outro, chá de erva-cidreira. O preço do queijo de coalho mantém-se inalterado. O da nata e o da paçoca também. O da garrafa de manteiga da terra sofreu uma pequena elevação.
Um cidadão carrancudo, de boné com a aba para trás, que – não sei por quê – acho ser bombeiro reformado, interrompe o meu caminho com uma proposta inesperada:
– Nós vamos votar no Bolsonaro. Gente séria vota no Bolsonaro.
Tentei esquivar-me. Debalde. Não gostaria de revelar ali as minhas preferências, em especial as políticas. Não consegui. Ele cresceu à minha frente e insistiu.
– Bolsonaro na presidência. Um ministério de oficiais das três armas. Fechamento do Congresso com o expurgo desses engravatados ladravazes. Eis aí a saída do Brasil.
Meu Deus! Driblei o meu implacável marcador. Escapuli pela margem esquerda. Peguei minhas comprinhas e fugi em direção ao meu carro. Vim-me embora.
Já em casa, curtindo um pouco a rede de varandas armada na parte mais interna da área coberta de minha casa, enquanto aguardava a hora do almoço, ouvi, vindo do quintal, a voz desesperada de meu neto:
– Vô! O Lucky morreu…
– Não pode! Não é possível! Não acredito!
– Ô vô! Hoje é primeiro de abril…
Uma resposta
ERRATA:
Onde se lê:”Já em casa, curtindo um pouco a rede de varandas armada na parte mais interna da área coberta de minha casa, enquanto aguardava a hora do almoço, ouvi, vindo do quintal, a voz desesperada de meu neto”, leia-se: “Já em casa, curtindo um pouco a rede de varandas armada na parte mais interna da área livre e coberta, enquanto aguardava a hora do almoço, ouvi, vinda do quintal, a voz desesperada de meu neto”.
ESCLARECIMENO NECESSÁRIO:
Lucky é o cãozinho preto de estimação de meus netos.