Reconexão

Tenho, entre minhas memórias mais antigas, a de minha avó materna usando o cabo de um garfo para abrir uma embalagem de fermento para fazer um bolo de fubá. A janela ensolarada da cozinha, a pia, a batedeira bege, o armário de madeira e os azulejos: tudo ali pra mim tem cor e textura.

Certa vez, li em algum lugar, que somos basicamente memórias. Existimos através dessas densas narrativas que vamos criando ao longo da vida e sobrevivemos através delas. Memórias, por sua vez, também são sentimentos. O filtro quase sempre acaba sendo o coração.

Das lembranças de minha avó ainda restam as plantinhas no quintal. A bacia de ferro que usei algumas vezes para brincar, a benção e os cabelos de algodão. Muito do que sou também existem nessas memórias.

Hoje, a cada bolo de fubá que faço, lembro de dona Naná. E cada plantinha que rego, tem um pouco dela também. Não sei ao certo até que ponto são memórias fiéis ao que existiu, mas são memórias sentidas, guardadas como sentimento.

A maternidade me reconectou com o que sou e não sabia. Memórias. Incontáveis memórias da infância e de afetos com mulheres que muito antes de eu ser, foram. Eu carrego todas dentro de mim.

Hoje é noite de Lua Cheia. Isso ativa em mim memórias de dias ensolarados. Não sei por qual razão mas a verdade é que minhas lembranças mais profundas são de dias ensolarados, de céu azul e Sol queimando na pele. Até o dia em que decidi que o campinho de futebol do tio Sovi era o centro da Terra. Não contei pra ninguém, era meu segredo: eu havia enfim descoberto a cúspide, o ponto mais alto do céu. A sensação, carrego até hoje. O mundo era grande demais pra mim, mas já ali eu amava cada detalhe em estar viva.

Memórias de brincadeiras de aventura – minhas preferidas. Era legal também brincar de boneca, imitar a vida adulta, mas explorar o mundo, investigar, descobrir universos. Haviam segredos em todos os lugares, havia encanto. Lembro de uma oração que fiz, pedindo a Deus pra nunca ver o mundo em preto e branco – como os adultos. Eu gostava das cores e queria continuar enxergando colorido depois que crescesse.

Hoje vejo um mundo caótico. Desigualdades, violências e muita luta de classe. Mas enquanto eu vejo Fernando dormir, percebo que ele também ainda tem um mundo pra descobrir pela frente. Ele tem um mundo pra inventar, caminhos infinitos para explorar e um céu azul imenso pra voar. Olho para traz e vejo dona Naná sorrindo. Olho pra frente e vejo Fernando descobrindo todos os dias a imensidão da existência. Não é fácil sobreviver. Mas um café e um pedaço de bolo de fubá tem ajudado. Memórias são afetos, reconexões. Maternar é mergulhar a fundo no presente, trazendo passado e pensando futuros onde mil sóis brilham queimando a pele, mantendo viva o desejo intenso de viver.

 

Juliana Magalhaes

Juliana Magalhães é licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestre na mesma área pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) . Atualmente é docente da UECE na cidade de Itapipoca. Mãe de primeira viagem do Fernando.

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Juliana Magalhaes

Juliana Magalhães é licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestre na mesma área pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) . Atualmente é docente da UECE na cidade de Itapipoca. Mãe de primeira viagem do Fernando.