No dia 6 de janeiro, Fernanda Torres ganhou o prêmio de melhor atriz por sua atuação no filme “Ainda Estou Aqui”. Ganhou em nome da dona Eunice e de todas as “Eunices” que permanecem anônimas no Brasil e que, mesmo depois do golpe de 64, continuam sendo golpeadas pelo abandono, muitas vezes tendo que sair de suas próprias casas sem retaguarda e ajuda financeira para criar seus filhos, numa sociedade que se cala, às vezes sem coragem para separar o joio do trigo.
Pode parecer repetitivo falar tanto sobre este filme; no entanto, vivemos em uma sociedade que não considera repetitivo o fato de muitas mulheres ainda passarem por situações desesperadoras em silêncio, vivendo realidades que acontecem em todas as camadas sociais e todos os tipos de lares: pessoas estudadas, pessoas carentes, classes sociais dos mais variados tipos com pessoas enterradas em religião e espiritualidade, que se intitulam esclarecidas com carreiras constituídas, mas que na prática só conseguem agir segundo seu machismo e individualismo, numa sociedade que continua não escutando o outro lado da história, apenas se abstém.
Ao assistir a uma entrevista de Marcelo Paiva, na qual ele relatava o que aconteceu após terem que deixar sua casa, pude compreender a dimensão do sofrimento daquela família.
A oportunidade de reflexão que este filme proporciona transcende sua história e se estende para vidas que almejam amparo e retratação refletido no próprio comportamento enquanto decidem de qual lado da história vão ficar: da Família Paiva ou de quem os penalizou, torturou e os hostilizou, ou, continuariam sem se pronunciar, neutros e como os hipócritas.
Ao redor desta premiação, existem muitas camadas de reflexão que colocam atitudes em xeque. E o que torna este filme ainda mais maravilhoso é como a arte em seu lugar de transcendência enxerga o desamparo desta história de atrocidades.
Mais do que o prêmio, iniciamos o ano com esta possibilidade de reflexão ao ver Fernanda receber o Globo de Ouro, nos dando um sentimento de reparação e nos possibilitando pensar no que fazemos com as pessoas e como as tratamos, de qual lado nos colocamos diante delas, e principalmente, se somos quem abrandamos o seu sofrimento ou resistimos até o fim sem enxergá-las.
Dona Eunice teve seu marido arrancado de seu lar e morreu sem saber onde estava o corpo dele — até hoje, a família não sabe. Ela teve Alzheimer no fim da vida, um filho sofreu um grave acidente que o deixou tetraplégico, estudou para garantir sustento à sua família, lutou pelos menos favorecidos e, mesmo sofrendo, sempre se colocou ao lado dos que sofrem.
É a arte dando o seu recado, provocando e convocando a todos sem precedentes, sem delimitar lados políticos, mas se impondo enquanto reflexão da própria história vivida e recontada.
Na Bíblia, o termo “mago” era usado para se referir aos sábios, eruditos e homens estudiosos. Acredita-se que os magos pudessem ser astrólogos ou astrônomos pois algumas versões da Bíblia falam que eles estudavam as estrelas.
O mundo mudou, e no Dia de Reis Fernanda representando uma “Rainha Maga” ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz em nome de dona Eunice e de muitas iguais a ela que estão por aí, deixando um “Viva” para todas que compartilham histórias semelhantes. Ela, uma atriz que já fez muitas comédias virou a estrela da noite por uma história que não tem nada de engraçada, aplausos, muitos aplausos para ela.
No dia em que li uma notícia relatando que ela foi ao túmulo de dona Eunice para agradecer, compreendi todo o seu percurso com essa família e sua história.
Enfim, é a arte deixando a história se perpetuar num tempo de reflexão contínuo que exige de todos nós um olhar com abertura para entender do que se trata este filme e a própria dona Eunice.
Feliz Ano Novo aos meus leitores!
Música: “Azul Da Cor Do Mar”. Com Tim Maia.
Foto do Instagram de @marcelorubenspaiva
Claudia Zogheib
Atende Presencialmente e Online
Psicóloga Clínica, Psicanalista,
especialista pela USP- SP
@zogheibclaudia
@augurihumanamente
@cinemaeartenodivã
claudiazogheib.com.br/augurihumanamente.com.br
Respostas de 3
Adorei o texto, parabéns
Parabéns pelo belo texto, esta psicanalista escrece no Brasil e exterior, com maturidade e sabiamente. Acompanho faz muitos anos.
Texto maravilhoso, esta psicanalista escreve com maturidade e sabedoria, ela sabe colocar bem as coisas. Parabéns!