“QuarenTunes”: em tempos de isolamento, uma playlist para sair da prisão mental

Tempos difíceis, hábitos novos, dinâmicas sociais cada vez mais intrincadas e um antigo problema: nossa débil compreensão sobre sacrifícios a serem feitos em momentos delicados. Qual o limite da ignorância humana frente a um problema de escala global, que desta vez supera diferenças políticas, ideológicas, econômicas, culturais, ecológicas, religiosas e tantas outras?

Bem, é preciso aceitar que o isolamento é uma realidade e, (in)felizmente, o único remédio amargo para o momento. Mas como todo remédio – principalmente para os amargos, há diversos efeitos colaterais. Bastante indesejados, por sinal. Bichos insatisfeitos como somos, ficamos tanto tempo ruminando o gosto ruim do remédio lá no fundo da boca que na maior parte do tempo esquecemos de ter paciência e lembrar do principal acontecimento depois que o ranço na boca passa: a cura.

Já é um clichê, mas este é o momento de nos separarmos para, de fato, permanecermos juntos. E nos unir para tentar sair desta como seres humanos melhores. Ando pensando muito nos últimos dias  sobre o quanto tudo, absolutamente tudo, que era tido como comum no cotidiano foi brutalmente alterado. Também, não é pra menos! Somos um povo que gosta do “mei do mundo”, de estar perto, abraçar, dar um xêro, se tocar. Como deixar, de uma vez – “pêi bufu”, como dizemos em cearensês, todos esses hábitos de lado? Enfim, nao há muito o que discutir: é necessário e mandatório. O lado bom é que temos todas as chances de aprender com essa lição/provação. Ou será que só iremos criar mais uma camada de reforço em nosso próprio medo, isolamento e egoísmo?

Foi justamente pra tentar fazer você pensar, refletir – e ainda sair um pouco do tédio da quarentena, que tirei algum tempo pra selecionar álbuns e músicas que chamei oportunamente, com meus velhos toques de trocadilhos sem graça, de “QuarenTunes”. São obras pra ouvir em tempos de isolamento que, acredito, podem ajudar a na verdade sair um pouco da prisão mental que possivelmente muitos de nós estamos criando. A maioria dos indicados aqui são álbuns conceituais que tem algum tipo de contribuição em suas temáticas e letras para este período em que a gente vai passar muito mais tempo em casa pensando na vida. Que eles sirvam de reflexão (e também alegria) pra gente repensar alguns valores e criar novos hábitos.

Aviso logo que tem de um tudo: MPB, rock, heavy metal, instrumental, blues, pop e tudo o mais. Ah, pra facilitar, condensei ao final do texto a maior parte dos indicados abaixo num link para uma playlist irada no Spotify. Tem muito álbum pra falar sobre, muitos dos quais quero e gosto muito de debater. Alguns já estão na minha pauta pra ganhar um texto exclusivo posteriormente, mas pra não ficar cansativo vou comentar só os primeiros da indicação, que considero especialmente relevantes. Não que os próximos na lista também não sejam, mas apenas por questões de tempo de leitura. E para que o restante da lista fique a seu critério de descobrir, interpretar e desfrutar.

A você que está lendo, fique em casa! E com a excelente companhia das minhas nada humildes indicações abaixo. Enfim, vamos à lista:

Milton Nascimento/Lô Borges – “Clube da Esquina”

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Dispensa comentários esse que é dos álbuns capitais de todos os tempos na nossa MPB. Inclusive um dos meus textos favoritos da coluna é totalmente dedicado a ele (clique aqui pra ler). Falar de sonhos, estrada, travessia, desafio, esperança, brasilidade é mais do que necessário neste momento e é por isso que já o indico não só para agora, mas para qualquer momento da vida. Se você nasceu neste planeta e ainda não conhece esse disco, corra e dê logo o play nele. O álbum inteiro é uma completa obra de arte, mas gostaria de destacar as lindíssimas “Cais”, “O Trem Azul”, “Nada Será Como Antes” e “Paisagem da Janela”. Se tem algo mais a dizer? É Milton, sempre Milton!

Guilherme Arantes – “Condição Humana” e “Castelos”

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Nunca guardei mistério sobre minha admiração profunda ao Guilherme. Pra mim, sem dúvida, um dos maiores compositores da nossa música, seja no pop/rock ou na pura MPB. Sua pegada de piano-forte à la Elton John é até hoje uma das características mais fortes em sua música. E para muito além dos hits-novelístico-radiofônicos mais conhecidos que pão como “Cheia de Charme”, “Meu Mundo E Nada Mais” e “Planeta Água”, o Guilherme tem uma baita duma discografia nem sempre bem explorada. Em tempos de refletir, indico então os excelentes “Condição Humana”, álbum bem recente (2013) com letras bem contemporâneas sobre justamente o que o título fala, com destaque para as excelentes “Moldura Do Quadro Roubado”, “Onde Estava Você”, “Olhar Estrangeiro” e ainda a faixa que dá nome ao disco. Voltando um pouco mais no tempo, temos o maravilhoso “Castelos” (1993) que sem dúvida tem seu ponto alto na faixa “O Espírito Secreto De Uma Vida”, uma versão maravilhosa de “The Secret Life Of Plants” do Stevie Wonder, cuja letra é um baita recado sobre a preservação do meio ambiente. A bela faixa ainda conta com Gilberto Gil na voz. Destaque também para “O Que Há De Bom”, “Alguém” e “O Lado Prático do Amor”. Enfim, Guilherme é sempre uma viagem deliciosa pelas nossas tantas coisas do Brasil.

Angra – “Rebirth”

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Tenho ouvido muito esse álbum nos últimos dias. “Rebirth” (2001) é um disco conceitual da banda brasileira Angra, considerada um dos bastiões do estilo power metal no Brasil. O disco fala justamente de um mundo em renascimento após um evento apocalíptico. Na época, significou também o renascimento da banda que, após uma crise e um término, retornou com nova formação. E, nossa, esse álbum fez parte da minha adolescência e olha como significa tanto hoje em dia! Será que vamos conseguir renascer também, cada um à sua maneira? E como sociedade? As letras são bastante reflexivas, com destaque para “Millenium Sun”, “Heroes Of Sand”, “Nova Era” e, claro, a faixa-título que na época do auge de nossa querida emissora TV União teve seu videoclipe massivamente exibido. Dica: pra entender a história toda, ouça o álbum começando pela última música.

Iron Maiden – “Brave New World”

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Um bravo novo mundo nos aguarda. Ou assim esperamos. Esse álbum da Donzela de Ferro dos titãs britânicos do metal Iron Maiden foi lançado no ano 2000, e além de celebrar o retorno do clássico vocalista Bruce Dickinson, traz uma leva de esperança ao que à época foi a chegada do novo milênio. O disco é recheado de letras bem legais sobre redenção e renovação, trazendo o homem como a dolorida marionete nas mãos do destino, mas lutando com todas as forças para triunfar ante os desafios do mundo moderno. Faixas mandatórias: “Blood Brothers”, “Brave New World”, “Ghost Of The Navigator”, “Dream Of Mirrors” e “The Mercenary”.

Pain Of Salvation – “BE”

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Bem, como explicar um álbum tão profundo que já virou até tema de monografia e dissertações de mestrado por aí? O Pain Of Salvation é uma banda sueca de rock progressivo que flerta bastante com temas mais introspectivos e psicológicos. O álbum “BE”, de 2004, pode ser considerada uma obra com letras que bebem muito da filosofia e outras ciências humanas. Basicamente, ele pretende contar a história de… toda a Existência! Sim, bastante pretensioso, mas também igualmente genial. Cada faixa traz a interpretação muito particular e profunda a respeito da experiência humana: o nascimento da alma, a percepção de si como alma (ou como Deus), a própria “criação” de Deus e os dilemas do existir. Parece complexo, não? E é. Como disse, há por aí monografias e dissertações a respeito da profundidade lírica e filosófica desta obra. Considero o ponto alto do álbum a faixa “Vocari Dei”, genialmente elaborada com mensagens de pessoas reais que enviaram mensagens de voz para a banda à época da gravação como se estivessem deixando recados para Deus, agradecendo ou pedindo algo, numa espécie de secretária eletrônica divina. Simplesmente emocionante!

Marillion – “Misplaced Childhood” e “Clutching At Straws”

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O Marillion é uma banda britânica de representatividade ímpar no rock progressivo, e sem dúvida uma de minhas favoritas ultimamente. A genialidade em cada uma de suas fases traz momentos marcantes e dois grandes deles estão nestes clássicos álbuns. “Misplaced Childhood” (1985) traz o hit mundial “Kayleigh” – talvez a mais famosa e automaticamente reconhecível da banda, dentre outros clássicos como “Heart of Lothian” e “Lavender” . A história do disco é essencialmente sobre amores perdidos, sucesso repentino, aceitação, infância perdida, mas com um final surpreendentemente otimista. Já “Clutching At Straws”, lançado dois anos depois, traz temas um pouco mais pesados como a frustração e a descrença, mas com excelentes canções que passeiam por estilos como o pop, hard rock e o progressivo. Destaques para “That Time Of The Night”, “Hotel Hobbies” e o hit radiofônico “Incommunicado”.

The Alan Parsons Project – “Eye In The Sky”

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Alan Parsons é “apenasmente” o engenheiro de som que mixou o clássico “The Dark Side Of The Moon” do Pink Floyd. Achou pouco? Junte a isso um baita talento em escrever álbuns conceituais de rock progressivo com seu próprio grupo, The Alan Parsons Project. Apesar de sempre ter deixado claro que não queria ser um rockstar e lançar músicas “para as massas”, Alan traz uma rica discografia com clássicos que são um ponto fora da curva em termos de primazia de produção e sonoridade. O excelente álbum “Eye In The Sky” (1982) dialoga justamente com um dos grandes dramas da sociedade moderna: a sensação de estarmos sendo sempre observados. O dilema do “big brother” traz bastante à tona a ideia do panóptico de Foucault, o mecanismo que sempre nos observa e vigia. O tema é totalmente abordado na faixa título, mas o disco prossegue com belas peças como “Gemini”, “Step By Step” e fechando com a linda e saudosista “Old And Wise”. Um marco na história do rock e que merece ser apreciado em lentos goles do que você preferir beber!

Pink Floyd – “The Division Bell”

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Falando em Pink Floyd, não podia faltar nessa lista! Mas não vou indicar o clássico mencionado acima, mas sim um disco importantíssimo chamado “The Division Bell”. Lançado em 1994, marcou o fim de uma era para a banda, pois foi o segundo lançado sem Roger Waters e basicamente foi o último álbum de estúdio da banda por muito tempo. Traz como temas principais a falta de comunicação, o isolamento, conflitos e autodefesa. Destaque para as excelentes “High Hopes”, “What Do You Want From Me”, “Take It Back” e “A Great Day For Freedom”. O brilhante duo composto pela guitarra de David Gilmour e os teclados hipnóticos do saudoso Richard Wright trazem uma baita viagem nos moldes em que a grandeza desta banda merece.

Queensrÿche – “Operation: Mindcrime”

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Eis uma ópera-rock! Se você nunca ouviu uma, pode se sentir sortudo em conhecer este clássico e atemporal trabalho do quinteto americano de metal progressivo Queensrÿche. “Operation: Mindcrime” (1988) traz uma história basicamente política sobre um homem que, descrente com o sistema, se aventura numa trama de crimes, assassinato e sabotagem para derrubar um “reich”. O protagonista, Nikki, é manipulado e comandado pelo misterioso Dr. X, que planeja uma grande revolução para derrubar o status quo. O álbum inteiro é recheado de falas e efeitos sonoros, seguindo uma linha de história intrigante e imersiva. Tudo costurado pelo baita instrumental de guitarras, bateria furiosa e a voz marcante de Geoff Tate. Para quem ama um bom rock pesado e progressivo, recomendo audição na íntegra e sem pausas! Destaco, porém, as faixas “Revolution Calling”, “Operation: Mindcrime”, “I Don’t Believe In Love” e “Breaking The Silence”.

U2 – “All That You Can’t Leave Behind”

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Empolgação. Positividade. Eletricidade. Motivação. Se desse pra definir esse álbum em quatro palavrinhas, seriam essas aí. Na contramão dos álbuns mencionados acima, esse que já é um clássico dos irlandeses do U2 foi lançado no ano 2000 e traz doses cavalares de energia que certamente vão te tirar da cama a qualquer momento. Destaque total para as quatro primeiras faixas, que já são praticamente imortais: “Beautiful Day” (nossa, aquele videoclipe no aeroporto era o máximo!!!), “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of”, “Elevation” e “Walk On”. É pra ouvir e abrir um sorriso imediatamente!

Simply Red – “A New Flame”

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Pra quem prefere uma dose mais tranquila de romance, jazz e algo mais leve e doce para momentos de relaxamento, indico o excelente “A New Flame” (1989), terceiro álbum do consagrado grupo de soul-pop britânico Simply Red. Fato curioso foi que, dia desses ao ler o encarte do vinil aqui em casa, vim constatar que podemos considerar “A New Flame” um álbum conceitual! Não sei afirmar com certeza se foi a intenção do ruivo Mick Hucknall e sua gangue, mas se você interpretar a sequência de cada canção, é possível inferir que o álbum todo traz a história implícita de um relacionamento, com começo (paixão, encantamento), meio (descobertas, amadurecimento e brigas) e fim (o término do romance, com cada um indo pro seu lado). Além disso, o disco todo é uma gostosa mistura de instrumental soul-jazz-pop com muitos momentos que te fazem querer dançar (ou só ou coladinho). Destaque para “Turn It Up”, “It’s Only Love”, “She’ll Have To Go” e a sensacional última faixa, “Enough”.

 

Demais indicações:

Evergrey – “The Storm Within”

Norah Jones – “Feels Like Home”

Neal Schon – “Beyond The Thunder”

Amy Grant – “Unguarded” e “Straight Ahead”

Ayreon – “Into The Electric Castle”

Belchior – “Alucinação” e “Melodrama”

Clannad – “Sirius”

The Cranberries – “In The End”

Eric Clapton – “August”

Galen Weston – “Plugged In”

Jeff Beck – “Blow By Blow”

Jude Cole – “A View From 3rd Street”

Live – “Mental Jewelry”

October Project – “October Project”

Tears For Fears – “Elemental”

Yanni – “If I Could Tell You”, “Tribute” e “Dare To Dream”

Anathema – “Weather Systems”

Journey – “Escape”

 

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