Os últimos procedimentos do Capitão obrigam-nos a colocar em pauta uma questão fundamental: da obrigatoriedade de autoridades constituídas em seguirem o protocolo ético respeitoso com os públicos internos e externos para os quais emitem suas comunicações, principalmente no caso de um presidente da República, por ocupar o cargo representativo máximo de uma nação, sob a pena de lhe serem impostas medidas que cobrem sua responsabilidade diante de tais atos.
A soberania popular, ao eleger um presidente, não o faz autorizando-o a agir como um imperador, muito menos como um ditador. Num Estado de Direito, um presidente da República precisa obedecer rigorosamente o que determina a Constituição Federal. Aliada a esta obediência, situa-se o dever de cumprir condutas públicas alicerçadas nos bons costumes civilizatórios e na diplomacia internacional.
Os oito meses de seu mandato estão recheados de repugnante baixaria produzida em atos e comunicações impróprias no exercício do cargo para o qual foi conduzido, revelando o caráter pessoal de que é possuidor. Se já na campanha eleitoral o seu discurso estava maculado pelo ódio e pelo preconceito para com a variedade das expressões individuais e coletivas constitutivas da sociedade brasileira, ao tomar posse não foi capaz de realizar a reflexão necessária que lhe possibilitasse compreender bem a dimensão e a responsabilidade histórica do mandato a si conferido.
O Capitão deixa muito claro sua concepção de Estado, a qual não contempla pluralidade democrática. Para ele, o Estado é personalista, fundado sob uma mistificação ideológica fundamentalista, quando anuncia pelos quatro cantos que seu mandato é uma missão recebida das mãos de Deus. É um Estado radicalmente anti-igualitário, promotor de uma sociedade hierarquizada e obediente, obstinado a efetivar seus objetivos políticos por meio de violência real e simbólica veiculadas em suas redes sociais.
Se durante a campanha eleitoral ele atacou verbalmente mulheres, trabalhadores, quilombolas, indígenas brasileiros, pessoas com orientações homoafetivas, movimentos sociais e líderes da Igreja Católica, hoje, numa ação sistemática de difusão de uma cultura de violência e de ódio, dispara sua verborragia contra personalidades e nações – como a Alemanha e a Noruega – que celebraram com o Brasil uma política ambiental em defesa da Amazônia; ataca preconceituosamente os governadores e o povo brasileiro do Nordeste; irresponsavelmente reforçou a humilhação pública da esposa do presidente da França; e por último, de forma covarde, vilipendiou a memória do pai da ex-presidente do Chile e atual Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, como já o havia feito anteriormente em relação a progenitor do presidente nacional da OAB, Filipe Santa Cruz.
Em reação imediata, o presidente do Chile, Sebastian Pinera, criticou abertamente o desrespeito do Capitão a sua antecessora: “É de público conhecimento meu compromisso com a democracia, com a liberdade e com o respeito aos direitos humanos em todos os tempos, lugares e circunstâncias. Sem prejuízo dos diferentes olhares que podem existir em relação aos governos que tivemos nas décadas de 70 e 80, sempre estas visões devem se expressar com respeito pelas pessoas. Não compartilho em absoluto a alusão feita pelo presidente Bolsonaro em relação a uma ex-presidente do Chile, e especialmente em um tema tão doloroso como a morte de seu pai”.
O Chile é uma terra que nos presenteou com dois Prêmios Nobel de Literatura. Gabriela Mistral, agraciada em 1945, foi a primeira mulher do continente americano a receber a distinção, premiada por sua poesia lírica. O segundo chileno premiado, em 1971, foi Pablo Neruda, autor que “dá vida ao destino e aos sonhos de um continente”, conforme justificou a Academia Sueca promotora do Prêmio. Neruda, além de diplomata e político, produziu uma vasta obra com destaque para “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”. Muito provavelmente Bolsonaro nunca leu alguma das obras literárias desses autores geniais.
O escritor chileno Ariel Dorfman afirmou que “custou-nos muito recuperar nossa democracia – uma luta que o povo brasileiro também enfrentou – e reivindicar o legado de militares como Alberto Bachelet (pai de Michelle), que pagaram com a própria vida por sua fidelidade à Constituição e o sonho de um Chile democrático. Ao atacar Bachelet, Bolsonaro atacou milhões de chilenos e chilenas que lutaram pelos direitos humanos e pela democracia. Michelle foi vítima de tortura, ao contrário de Bolsonaro que apregoa a tortura e homenageia torturadores. Bolsonaro é alguém que atropela a democracia”. E complementamos: Até quando?
Para concluir, do livro CEM SONETOS DE AMOR, de Pablo Neruda, vamos buscar luzes e o sentido da nossa resistência, certeza de retorno de uma primavera colorida, plena de respeito e da solidariedade entre nós:
É HOJE: TODO ONTEM FOI CAINDO
ENTRE DEDOS DE LUZ E OLHOS DE SONHOS,
O AMANHÃ CHEGARÁ COM PASSOS VERDES:
NINGUÉM DETÉM O RIO DA AURORA.