Prova e convicção, por Márcio Tavares d’Amaral

Um farol apagado é ou não um farol? É a luz que faz o farol ou é o farol que faz a luz?

Problema tremendo da filosofia, há mais de dois milênios, é distinguir o que parece, mas não é, do que é mesmo, de verdade. Devia ser óbvio: se é, é; se não é, pode parecer à vontade, mas, sinto muito, não é. Pronto. — Só que não. Um farol apagado é ou não um farol? É a luz que faz o farol ou é o farol que faz a luz? O que é que faz a maré alta? A água que avança sobre a praia ou a praia que encolhe sob as águas? As duas? Enquanto não se souber isso, não se sabe nada. A verdade fica em suspenso, perdida nas aparências. Pode-se pensar que essa é uma daquelas questões que só interessam aos filósofos, dessas incompreensíveis, meio tolas, nada a ver. Mas não. É talvez a questão que mais diretamente diz respeito à vida. Não à Vida, assim, com maiúscula, coisa metafísica. À vida mesmo, às nossas vidas. No mais miúdo delas. Esse problema de ser ou parecer é do nosso cotidiano. Às vezes a gente não vê. Mas está lá.

Por exemplo: fulano é ou não é dono de uns imóveis? Pergunta bem simples, só devia admitir um sim ou um não. Mas o jovem Inquisidor encarregado de respondê-la não sabe. E diz: “Parece”. Um filósofo tem a obrigação de perguntar: “Parece ou é?” — “Não tenho prova”, admite o jovem Inquisidor. — “Nada?” — “Nada cabal. Evidência, mesmo, não. Mas que parece, parece”.

Tem bem uns dois mil e quatrocentos anos que isso não basta. A angústia da filosofia foi, ainda é, justamente lidar com as aparências. Desencavar o ser de dentro do parecer. Porque, disseram lá atrás, as aparências enganam. E, no engano, a verdade desanda. A verdade ou é ou não é. Não tem negociação.

Os sofistas do século V a.C. não concordaram com isso. Só há aparências, disseram. Nada de verdade. Só discurso. Fala-se não para provar, mas para convencer. Produzir convicções. Sem provas. (Eu sei, o jovem Inquisidor não disse a frase assim, nessa forma brilhantemente lapidar. Mas esse é o sentido, e como um sofista o invejaria!)

Os filósofos de carteirinha, Sócrates, Platão e Aristóteles à frente, revoltaram-se, no século IV, com essa barbaridade. Os sofistas, francamente, tinham exagerado. Contra eles, esses grandes filósofos foram os primeiros procuradores. Buscaram a verdade soterrada sob as aparências. Se as aparências enganam, a verdade precisa de quem a defenda dos entulhos. Os grandes filósofos foram também os primeiros advogados. E eram eles que decidiam quando a verdade finalmente aparecia de dentro da impureza das aparências. Lavavam-na, faziam-na luzir, iluminavam-na. Também foram, portanto, os primeiros juízes. Procuradores, advogados e juízes, tudo por amor à verdade. — Com essa altíssima origem, a ética filosófica devia ser prova obrigatória no exame da OAB.

Pois, no direito, a coisa se passa assim: dá-se um fato; ele vem envolto numa multidão de aparências e pistas, boas e más; é preciso discernir umas das outras; as boas viram prova; a verdade é encontrada: parecia uma coisa, foi-se ver, não era, e fez-se a luz. Fim do processo. A vida pacificada pela verdade, o mundo equilibrado pela justiça.

Mas também pode ser assim: parece haver um fato; ele vem envolto numa multidão de aparências; na impossibilidade de discernir as boas das más, acrescentam-se outras (na esperança de que, somando mais, se encontre algo); não se consegue achar a boa prova; mas o processo precisa fechar; e se fecha ‘por convicção’. Não apareceu a tal demonstração cabal. “Mas parece ser”. (Isso é uma simples convicção.) “Então só pode ser.” (Já isso é um grande chute, um desejo extrajurídico.) “Logo, é. E isso, finalmente, é péssima lógica. Esse ‘logo’ entrou no raciocínio menos naturalmente do que Pilatos no Credo.

Mas fechou o processo. Podemos voltar para o mundo e a vida, tudo lavado e limpo, expeditamente, a jato. — Qual o quê! O mundo está de cabeça para baixo, e a vida ferve de raiva.

“O que aconteceu??”, espanta-se o jovem Inquisidor. — Aconteceu que, por falta da prova de filosofia no exame da OAB, o sofista venceu. O filósofo, procurador da verdade, não foi chamado aos autos. Mal procurada sob os escombros das aparências, a verdade ficou uma ferida aberta. “Será? Não será? Pode ser.” — “Pode ser” não vale. Convicção não serve.

O pobre filósofo precisa de evidências. Cabais. Probatórias. Ou não pode julgar. E a verdade não vai aparecer. “Eu creio que…” “Tenho certeza de…” “Está na cara que…”. Essas certezas subjetivas não colam. São inúteis. Pior, são perigosas. A verdade pode naufragar nelas, a justiça pode morrer delas. O processo não pode fechar assim. A verdade sofre.

Chamem depressa um filósofo. A coisa está feia. O tempo esquentou. O fervor das convicções se arroga direitos de verdade. Provas? Não há. Nem precisa. Chamem depressa um filósofo! Nem carece ser dos grandes. Mas tem que ser logo. Agora. A jato.

(*) Marcio Tavares d’Amaral – é professor Emérito da UFRJ (História da Filosofia), escritor e colunista semanal do jornal O Globo. O texto acima foi publicado na edição de O Globo deste sábado, 24/09.

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3 comentários

  1. Valter Hernandez

    Não dá para afirmar que “há verdades absolutas”, existem apenas convicções pessoais como a fé. Além disso, conceitos como absoluto, eterno, infinito, perfeito, podem ser apenas composições de ideias. Sobre o farol, a questão é apenas de definição. Sobre questões de fatos, como diz Hume, não há prova possível. O restante são conceitos que qualquer um pode estabelecer, nisso os filósofos são pródigos.

  2. Oswald Scaico

    Nossas verdades são sempre relativas, a faculdade da razão assim requer – razão significa relação. Há verdades absolutas, mas estas não são apreendidas pela razão, e sim pela fé. São dois domínios do saber humano distintos.

  3. Sokrates

    Filosofia barata, tão barata que não pode sequer ser chamada de sofisma. Aconselho (i) serem mais honestos, (ii) estudar um pouco mais para falar sobre assuntos fora do seu campo de conhecimento ( direito, por exemplo ), (iii) trocar o vermelho surrado pelo branco da neutralidade. Demagogia demais mancha, inclusive as consciências. Por último, que tal trabalharem como todo mundo que não se rotula de intelectual ?